Algoritmos e Psicanálise: reflexões

Ainda no clima do evento "Psicanálise e Algoritmo", realizado no final de novembro de 2024 no Sedes, Flávio Veríssimo faz uma boa discussão sobre o impacto da lógica dos algoritmos na subjetividade contemporânea e em como a psicanálise pode operar como enquadre contracultural. Confiram!

 

ALGORITMOS E PSICANÁLISE: REFLEXÕES

Dias 29 e 30 de novembro tivemos, no Instituto Sedes Sapientiae, um evento sobre algoritmos e psicanálise.  Foi um encontro produtivo que gerou muitas reflexões. Compartilho aqui algumas delas.

Ainda acho que não compreendo o que é algoritmo em sua profundidade.  Mas, a partir das ricas falas que ouvimos nesse evento, entendi algo fundamental para reflexões mais amplas: o algoritmo é uma receita. Pode ser de bolo, de como montar um móvel ou de como um programa complexo vai interagir com cada pessoa em específico. Para isso, usa os dados que distribuímos diariamente pelas redes, de modo a nos fazer pensar que precisamos ou desejamos algo.

Ao tentar compreender um fenômeno, acho importante saber, etimologicamente, quais são suas raízes. No caso do termo “algoritmo”, este tem origem no nome do matemático persa Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi  (780-850 d.C.), considerado o pai da álgebra. “Al-Khwarizmi” gerou o termo em latim “algorismus”, do qual derivou “algoritmo”.

De volta ao evento “Algoritmo e Psicanálise”, logo em sua abertura Ilana Katz reflete sobre o achatamento do tempo lógico lacaniano. De modo resumido, Lacan separa o tempo lógico em 3 momentos: o momento de ver, o momento de refletir e o momento de concluir. Ele fundamenta nisso a duração variável de uma sessão, que, segundo afirma, não deve se ater a um tempo cronológico predefinido, mas sim a esses momentos que compõe o tempo lógico. Ilana, em sua explanação, propõe que na nossa dinâmica de interação com os algoritmos, o “tempo de compreender” fica achatado entre o “tempo de ver” e o “tempo de concluir”.  Tal idéia foi acompanhada pela fala da Julieta Jerusalinsky.  Ambas sugerem que, se esse é o tempo lógico do qual emerge o sujeito, o achatamento do tempo de compreender (praticamente eliminado pela rapidez de respostas que o algoritmo dá para o que ele deduz que nos falta) faz com que o sujeito não experimente o ciclo necessário para emergir.

No mesmo encontro, Marcelo Buzato nos contou que os dados são fornecidos aos algoritmos não apenas pelas informações que colocamos nos formulários ou nas redes através de buscas, mas também pela intensidade da pressão que é colocada nos toques na tela do celular, pela direção e duração do olhar para cada imagem, texto ou produto, entre outras fontes de captura de dados que nem percebemos. Fornecemos, dessa forma, dados para um sistema que sabe sobre nós muito mais do que imaginamos.

Por meio dessa “receita”, quanto mais nos expomos aos algoritmos, menos nos resta espaço para sermos sujeitos.  Parece tão simples quanto terrível e essa idéia me remete à cena do filme Matrix (1999) na qual os humanos, adormecidas placidamente em seus casulos, são transformados em baterias para uso em máquinas e computadores, enquanto sonham que vivem. 

Numa cena estarrecedora, um dos personagens que conseguiu escapar da Matrix (portanto, dos casulos), tem um encontro com o “agente Smith” (um programa criado para capturar os fugitivos).  Reagan Cypher é o nome do fujão arrependido que se entrega ao agente, pedindo para voltar ao casulo. Os dois conversam enquanto Cypher janta em um restaurante chique, alegando que sabe que o suculento filé que está colocando na boca é uma ilusão. No entanto, alega que, após 9 anos privado dessa sensação, conclui que “a ignorância é uma benção”, que “não quer lembrar de nada” e que “quer viver a ilusão de ser alguém importante, talvez um ator” (qualquer semelhança com o ex-presidente dos EUA de mesmo nome não deve ser mera coincidência). Seria uma forma de servidão voluntária, de entrega ao Outro, pela via da alienação de si?

O avesso disso é quando Neo, ao despertar da Matrix, é recepcionado por Morpheus com a fala que poderia ter sido dita por um psicanalista: “bem-vindo ao deserto do real!”.  De fato, parece que é disso que se trata: de um lado a ilusão de um eu ideal fálico (para quem nada falta) e, de outro, o “deserto do real” com suas desagradáveis castrações, faltas e vazios.

Infelizmente, essa imagem faz muito sentido e vai ao encontro do que sugere o outro filme, “O Dilema das Redes”. Ele nos sugere que, na ilusão de sermos consumidores de produtos, somos involuntariamente e inconscientemente transformados no próprio produto, uma vez que nossos dados e nossa potência de consumo são vendidos para empresas de marketing digital.

Assim, por meio dos algoritmos, o sujeito contemporâneo tem se conformado em ser uma máquina de trabalhar e consumir, sem ter o tempo de SER. Com o agravante de estar convencido de que consumir é a justa compensação por trabalhar em excesso, como se “existir” enquanto sujeito ficasse de fora dessa equação. No passado, o ser humano se sentiu ferido narcisicamente ao ser identificado por Darwin como um parente dos macacos, mas agora se coloca voluntariamente no lugar de produto ou máquina.

Dessa forma que os algoritmos, a serviço da lógica de consumo, convocam o sujeito para um tempo que Walter Benjamin chama de “vivência”, em que o que é vivido produz sensações e reações imediatas, mas que não modificam necessariamente o psiquismo, como nos esclarece Maria Rita Khel em seu livro “O Tempo e o Cão”. Ela nos apresenta este trabalho como sendo uma obra sobre as depressões (segundo a autora, um adoecimento social decorrente dos tempos achatados e achatantes da subjetividade em que vivemos), mas que me soa mais como um tratado sobre o impacto dos tempos na formação das subjetividades e nos modos de vinculação social na atualidade.

Para não deixar inconcluso o pensamento de Benjamin, ele contrapõe “vivência” à “experiência”. Se a primeira é atravessada por sensações e reações imediatas, a segunda se refere aos tempos em que as narratividades sobre o vivido construam possibilidades de que tenham impacto transformador para o sujeito. É isso que fica subtraído nos tempos céleres que os algoritmos nos convocam a viver.

Não à toa, a palavra / expressão verbal do ano de 2024, eleita pelo Dicionário Oxford, é “brain rot”, algo como “cérebro estragado” que remete à deterioração do estado mental causado pela sobrecarga digital. Vivemos convocados por essa demanda de estragarmos nossa capacidade de pensar, em tempos acelerados de proliferação de estados de supressão do sujeito e de “burnout”.

A boa notícia é que a psicanálise parece instituir o avesso do achatamento do tempo e do sujeito ao estabelecer um enquadre em que os estímulos e demandas do mundo (incluso os algoritmos) ficam de fora, estabelecendo assim um ambiente estável, de suspensão das satisfações e de espaço e tempo dilatados de modo a convocar a emergência da falta, precursora do desejo e, portanto, do sujeito.

O psicanalista zela por um oásis em que o vazio é estabelecido e o sujeito se depara com um “espaço potencial” (Winnicott) de existência.

Fica aqui a uma questão aos atendimentos online, que apesar de terem se mostrado viáveis, nem sempre conseguem garantir essas condições.

Penso que, cada vez mais, a “mera” função de zelador deste enquadre contra-cultural faz do psicanalista e da psicanálise uma proposta revolucionária de preservação e tessitura da subjetividade.

Flávio Veríssimo é psicólogo e psicanalista, membro do GTP Faces do Traumático e supervisor do Aprimoramento Clínico do projeto Favela de Psicanálise.

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