Bons encontros

Reproduzimos aqui a apresentação de Maria Laurinda R. Sousa feita no lançamento do livro de Flavio Ferraz: Desafios epistemológicos para a psicanálise. Ensaios Psicanalíticos III , que ocorreu no sábado, dia 15 de março, na Livraria da Vila. Neste texto, Laurinda, colaboradora do Blog,  compartilha conosco seu prazer com a leitura do livro e suas impressões sobre os ensaios.

 

BONS ENCONTROS

Sábado, 15 de março. Livraria da Vila. Lançamento do livro de Flavio Ferraz: Desafios epistemológicos para a psicanálise. Ensaios Psicanalíticos III.  Bate-papo do autor com Décio Gurfinkel e M. Laurinda R. Sousa.

Descrito dessa forma, o convite pode parecer, simplesmente, parte de nosso cotidiano. Não foi assim. Chamava a atenção o enunciado em letras maiúsculas, logo no início do convite: LANÇAMENTO PRESENCIAL.

É sobre o PRESENCIAL que quero falar. Pois ele indicava o desejo de corpos presentes; de encontros. Encontro com o texto, encontro com o autor, encontro com amigos de sempre e com outros que há tempos não vemos. Como comentadora, posso falar especialmente do encontro com o prazer na leitura destes ensaios e com a conversa com Décio, na semana anterior para falarmos do livro, de nossa relação com Flávio e dos recortes que poderíamos privilegiar para o bate-papo do lançamento.

Tenho com Flávio, para além da parceria no trabalho de formação, o interesse pela literatura (tão presente em seus textos), pela  culinária (arte que ele também desenvolveu e nos presenteou com a escrita de vários livros com as comidas especiais de cada região deste país) e, também, o encanto com certas viagens por regiões que nos convidam à aventura de descobertas geográficas e arqueológicas, como foi, por exemplo, a troca que fizemos a respeito da Serra da Capivara e o trabalho surpreendente de Niéde Guidon.

Foi, de um jeito um pouco transgressivo e surpreendente para mim, que essa viagem e o trabalho arqueológico de Niéde me fizeram companhia na leitura destes desafios. Tal como Niéde na Serra da Capivara, Flávio esteve presente como guia nos caminhos destes ensaios: conduziu-me por trilhas conhecidas e não tão conhecidas e, inesperadamente, apontou-me  detalhes da paisagem que demandavam cuidado e paragem para examinar uma outra forma de compreensão e precisão. Delicadeza própria de quem está às voltas com o trabalho de pesquisa e transmissão.

Se no trabalho da arqueologia há uma paixão pela descoberta de vestígios da origem, vestígios que nos contém uma história de nossa própria ancestralidade, há também, sempre, um desconhecimento em suspenso. Um desconhecimento que deixa o campo aberto para novas construções. Essa mesma atitude pode ser reconhecida no que é próprio do movimento psicanalítico desde a sua origem: a preocupação de Freud em nomear e apontar para um novo campo de saber, considerando e ao mesmo tempo rompendo com o que era conhecido na sua época. Um campo de saber capaz de delimitar um novo objeto; um objeto psíquico. Mas um campo de saber que não é fechado; convidando a novas abordagens e descobertas sem que, no entanto, a epistemologia que é própria de seu objeto, seja corrompida.

Dizer que o objeto da psicanálise é Objeto Psíquico,  objeto da pulsão, objeto da objetalidade e não da objetividade, objeto da sexualidade e não da conservação, é demarcar justamente, como apontou Renato Mezan,  que não se trata de um objeto material – como o das ciências duras, de um objeto ideal como o das matemáticas, ou de um objeto cultural como propõe as ciências sociais. Definir um objeto próprio demanda uma epistemologia própria e é sobre isso que Flávio insiste nos diferentes olhares que faz sobre o campo da psicanálise.

Gosto do termo proposto por Flávio: desafios - porque ele aponta para o imprevisível, para os impasses, para as adversidades. Para o que nos convoca pensamento, revisão do já conhecido, temporalidade. Mas, paradoxalmente, para aquilo que também pode nos convocar a respostas e atos impensados e dos quais só podemos falar a posteriori. São acontecimentos próprios do campo da transferência e da contratransferência. Mais estritamente, podemos dizer que a situação clínica é sempre um desafio: ela não se estabelece de maneira definitiva, mas precisa ser mantida ou reinstaurada, continuamente pelo trabalho psíquico do analista. E se sustentamos o ideal de que cada analista se construa em sua singularidade, portador de um estilo próprio e único, isso não o isenta de observar os pontos inegociáveis da psicanálise, como já afirmado por Ana Sigal, ou os aspectos universais do funcionamento psíquico, como destacou Renato Mezan.

Ao escrever para esta apresentação, vi-me tentada a anunciar meus vários momentos de paragens e encanto nas trilhas desta leitura. Mas, dei-me conta de que isso demandaria uma longa estadia no tempo e no espaço. Prefiro, antes, fazer o convite a que vocês também encontrem o prazer das descobertas desta viagem, tendo em Flávio um bom guia de percurso. Considerando toda a diversidade de posições e referências tão cuidadosamente apontadas por ele em suas pesquisas no campo da Psicanálise, seus escritos e seu trabalho de editor, cabe retomar a pergunta feita por Décio Gurfinkel em seu livro Relações de Objeto: A partir de qual ponto novas ideias transformam os fundamentos da disciplina a ponto de descaracterizá-la? (2017, p.57-58).

Penso que estes Ensaios respondem precisamente a essa questão.  A tentativa de identificar o núcleo próprio da metapsicologia com suas invariantes, do cuidado em sustentar o que fundamenta sua epistemologia e seu objeto específico, revela ainda a aposta, feita por Flávio,  de que a Psicanálise terá como responder às novas modalidades de sofrimento psíquico reveladas pelas transformações sócio culturais: as questões do racismo, as questões de gênero, as novas organizações familiares, o mal-estar decorrente da precarização da vida e do fascismo que se expande no mundo contemporâneo.

 

Maria Laurinda R. Sousa é membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e colunista do Blog do Departamento

Comentários

  1. Não pude estar presente, mas a leitura de Laurinda, acendeu em mim o desejo de conhecer o texto.
    Cumpriu seu papel
    Parabéns Flavio, Laurinda e Décio👏

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  2. Obrigada, Ana. Ler com prazer é uma forma de presença. bjos

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