Savana Digital

Carla Belintani desenha um cenário importante sobre os impactos da inteligência artificial na constituição da subjetividade. Confiram:   

 

SAVANA DIGITAL 

Nos encontros recentes do grupo de estudos sobre Cultura e Psicanálise, temos nos dedicado a investigar os impactos da inteligência artificial e suas vicissitudes na constituição da subjetividade.

Essas imersões me levaram a refletir sobre o conto “A Savana”, do escritor Ray Bradbury. Lançada em 1950, essa narrativa de ficção científica é profética ao projetar a realidade que nos atravessa em 2025. No conto, a família Hadley vive numa casa futurista automatizada, onde os filhos, Wendy e Peter, gêmeos de 10 anos, assumem o controle da situação por dominarem um repertório tecnológico menos conhecido pelos pais. Para recuperar sua autoridade, os pais decidem reprogramar aquele lar para o sistema analógico, mas parece tarde: as crianças já criaram uma realidade artificial ameaçadora.

A escolha dos nomes dos filhos não parece aleatória, pois se trata de uma clara alusão aos personagens de Peter Pan, de J.M. Barrie, que vivem na mítica Terra do Nunca, um lugar onde as crianças nunca crescem e os adultos são figuras assustadoras ou ausentes. Neste refúgio encantado, a infância é eterna, os desejos se realizam sem limite e a presença do adulto ameaça a liberdade. O conto atualiza esse imaginário de forma distópica: Wendy e Peter Hadley vivem numa casa que, como na Terra do Nunca, atende a todos os seus desejos sem mediação e sem espera. Os pais são vistos como obstáculos à satisfação plena, por isso devem ser eliminados.

O cômodo central da casa, chamado pela família de “Casa Feliz”, é uma sala de realidade virtual — o “Berçário” — que materializa os pensamentos das crianças em paisagens hiper-realistas. Nesse cômodo, as crianças criam uma savana africana com leões selvagens, e essa projeção mental recorrente dos filhos se torna instrumento de destruição dos pais, sugerindo que os desejos inconscientes das crianças se realizaram por meio da tecnologia. A realidade virtual do berçário, onde impulsos inconscientes ganham forma concreta, é a versão tecnológica e sombria da Terra do Nunca: não mais sustentada pela fantasia infantil, mas pelo poder da máquina que concretiza o desejo. Os filhos não só fantasiam a morte dos pais, como dão forma a ela.

Essas referências nos ajudam a refletir sobre a infância hiperconectada de hoje, em que crianças e adolescentes vivem grande parte de sua experiência psíquica em mundos digitais autorreferentes: games, redes sociais, avatares e outras simulações de realidade. Nestes espaços, não há exigência de simbolização e a alteridade é, muitas vezes, substituída por algoritmos que confirmam e replicam o próprio desejo. Ou seja, a mesma tecnologia usada como entretenimento, diversão e acelerador de tarefas para os pequenos também pode ser a vilã do nosso roteiro, pois dificulta o desenvolvimento da empatia, da linguagem simbólica e da capacidade de lidar com a frustração - experiências essenciais para o amadurecimento psíquico. É fato que a dependência tecnológica tem substituído as relações humanas por meio de estímulos imediatos e controláveis. E, por vezes, quando pais confrontam essa dependência - retirando ou limitando o uso das telas - testemunhamos a violência real ou simbólica contra os pais, como em A Savana.

A decisão dos Hadley de terceirizar à casa a função de educar, alimentar e cuidar emocionalmente dos filhos remete a pais - muitos bem intencionados - que substituem sua presença afetiva por recursos digitais, delegando às telas o papel de contenção, escuta e até de regulação emocional.

O berçário do conto materializa aquilo que as crianças desejam inconscientemente, ecoando o modo como algoritmos de redes sociais e plataformas digitais devolve aos usuários versões idealizadas e infinitas de seus próprios desejos (reconhecimento, agressividade, prazer, voyeurismo), sem intermediação ou elaboração simbólica.

O conto nos mostra como a função paterna (não necessariamente o pai, mas a instância simbólica que separa a criança da fusão com o desejo materno) é fundamental para o desenvolvimento psíquico. No conto, essa função está ausente: os pais são passivos, hesitantes e a casa ocupa um lugar de "mãe total" que dá tudo, sem castração figurada. A ausência de limites favorece o ato.

O desfecho do conto remete à pulsão de morte. Por isso "A Savana" é um alerta sobre os riscos de um mundo onde a tecnologia substitui as relações, já que o espaço digital, quando ilimitado e desregulado, pode tornar-se uma cena onde o gozo escapa ao domínio simbólico, favorecendo compulsões, violência e destrutividade (como o cyberbullying, discursos de ódio, vícios digitais, etc.). Nesse terreno selvagem e incerto, a psicanálise contribui com o resgate da importância da falta, da escuta e da metáfora - elementos fundamentais para sustentar a subjetividade em tempos de excessos virtuais. Enfim, o conto nos convida a repensar os modos de habitar o presente e todos os seus dispositivos tecnológicos, que podem nos devorar tanto quanto os leões da savana.

Essa temática vem despertando inúmeras indagações no projeto “A Casa Frida”, que perpassa desde a impossibilidade do trabalho de luto até a falta de recursos de simbolização. Por conta desse contexto atual o livro “o sujeito na contemporaneidade” de Joel Birman vem trazendo alguns direcionamentos.

Birman propõe uma leitura do sofrimento psíquico que difere das formas clássicas do recalque e da neurose. Ele aponta que hoje nos deparamos com sofrimentos ligados a uma precariedade na constituição do eu e da vida simbólica — o que denomina "patologias do agir, do corpo e da cena". "Estamos diante de um sujeito que não consegue elaborar seus conflitos através da palavra; ele age, encena, atua".

O sujeito contemporâneo apresenta uma hipertrofia da cena imaginária em detrimento da simbolização, o que favorece formas de sofrimento psíquico mais ligadas à compulsão, à violência e à atuação. Esse dado é particularmente relevante ao se pensar o berçário de Bradbury como um espaço onde a fantasia não encontra limites simbólicos, e por isso se torna ato. O berçário hiper-realista é o lugar da atuação indiscriminada e literal do desejo. Os leões, expressão pulsional da hostilidade infantil, agem no lugar da palavra — exatamente como Birman descreve: uma cena em que o real transborda e não encontra forma simbólica de representação. Além disso, Birman destaca a corrosão do laço social e das instâncias de alteridade na contemporaneidade, o que empobrece a constituição do sujeito e intensifica experiências de desamparo psíquico. A falta de um outro que escute, frustre e simbolize favorece a vivência de um eu encapsulado, sem bordas, à mercê de imagens e estímulos ininterruptos. Em tempos de hiperconectividade e imagens em fluxo contínuo, como Birman observa, há uma dificuldade crescente de se produzir uma narrativa subjetiva. O excesso de imagens pode sufocar a possibilidade da palavra, da pausa, do silêncio — justamente o que a análise oferece como espaço ético e transformador.

Diferentemente dos diálogos travados com a IA, que hoje parece ser o sujeito que tudo sabe, na análise há um suposto saber. O espaço de análise colabora para que, a partir da falta, a palavra possa emergir e o luto consiga ser narrado e reinscrito. A escuta do analista sustenta a falta, permitindo que o sujeito comece a construir um novo laço simbólico com o que foi perdido, em vez de buscar soluções imediatistas.

O texto “Observações sobre ética em psicanálise”, de Sérgio Telles, destaca que “a ética da psicanálise não é a da moral tradicional”, mas está ancorada no reconhecimento do desejo inconsciente e na responsabilidade subjetiva que dele advém.

“O sujeito é convocado a assumir a verdade de seu desejo, independentemente das injunções morais ou sociais”.

No conto de Bradbury, nos deparamos com o oposto: as crianças não são convocadas a se responsabilizar por seus desejos, pois o sistema tecnológico (o berçário) atua como um campo de gozo absoluto, onde tudo o que se imagina se realiza. Portanto, não há espaço para o recalque, a espera ou a elaboração. Como aponta Telles, a psicanálise convida o sujeito a sustentar seu desejo mesmo diante da falta, enquanto no conto essa falta é apagada, resultando em destruição. A ausência de mediação é justamente o que torna o desejo tão perigoso e literal.

Telles enfatiza o papel da função simbólica da palavra e do analista como aquele que sustenta um lugar ético de não-saber, ao invés de ocupar o lugar de mestre ou de conselheiro que detém a resposta. “Ao contrário de outras práticas, a psicanálise não oferece normas de conduta nem soluções para a vida. (...) Não visa a adaptação do sujeito, mas a criação de um espaço de escuta que possibilite a emergência da singularidade do desejo”, observa Telles.

Neste aspecto, no conto “A Savana” o berçário é a antítese do enquadre analítico: não há silêncio, não há espera, não há interpretação — apenas a materialização imediata do desejo. O resultado é a falência da subjetividade das crianças, que se tornam reféns de seus próprios impulsos.

Telles nos lembra que a ética psicanalítica exige do analista uma posição ética radical, que resiste à tentação de responder de forma imediata às demandas do analisando. Nesse sentido poderia se aproximar da função parental, ao invés dos pais cederem a todos os desejos dos filhos, precisam sustentar um limite e favorecer a escuta, promovendo a constituição de um sujeito desejante.

No conto, os Hadley não sustentam esse lugar. Ao contrário, cedem, culpabilizam-se, têm medo de frustrar os filhos. “Não se trata de prometer felicidade ou harmonia, mas de criar condições para que o sujeito possa enfrentar os impasses do desejo”, pontua Telles. A ausência desse enfrentamento leva ao ato violento: quando não há palavra, resta a ação bruta. Os leões, metáfora dos desejos hostis inconscientes, devoram os pais — ou seja, devoram a possibilidade de mediação simbólica.

Enquanto a casa de Bradbury elimina a ausência, a psicanálise, como lembra Telles, a sustenta como condição para a emergência do sujeito. A clínica, nesse sentido, é o espaço onde o sujeito pode deixar de ser "devorado" por seus impulsos inconscientes e começar a escutá-los, transformá-los, elaborá-los — pela via da palavra, do vínculo e da escuta ética.

No texto “O mal estar na civilização”, de 1930, Freud já antevia com notável precisão os dilemas éticos, culturais e psíquicos que continuam a nos atravessar quase um século depois. Ele argumenta que o progresso da civilização, ao mesmo tempo em que promove segurança, ordem e conforto, impõe um alto custo ao sujeito, pois exige a repressão de seus impulsos e a renúncia pulsional em nome do convívio social. Essa renúncia é o preço do mal-estar: a tensão permanente entre o desejo individual e a vida em comum.

No entanto, no mundo contemporâneo — como apontam Birman e Bradbury — essa lógica parece ter se invertido: em vez de renunciar, o sujeito atual é convocado continuamente a não perder nada. Mas o que Freud já nos advertia é que essa tentativa de abolir o mal-estar, paradoxalmente, o aprofunda.

O sujeito que não pode sofrer, que não pode perder, que não pode elaborar a dor, adoece psiquicamente. Esse é o ponto em que Birman atualiza Freud: o sofrimento contemporâneo não se organiza mais segundo os moldes clássicos da repressão neurótica, mas em formas caóticas e não simbolizadas de sofrimento.

A proibição do uso de celulares em salas de aula até os 16 anos, que vem sendo implementada em diferentes países e Estados, pode ser entendida como uma tentativa institucional de reintroduzir a função simbólica da autoridade e do limite. Essa medida se alinha ao que Freud defendeu como necessário para a vida em sociedade: a renúncia pulsional e a inscrição da lei. No entanto, essa tentativa encontra resistência: muitos jovens têm no celular a extensão do próprio eu, do narcisismo e da identidade. A separação forçada, portanto, não é simbolizável como frustração educativa, mas vivida como castração intolerável, justamente porque, como Birman descreve, falta ao sujeito contemporâneo uma estrutura simbólica sólida para suportar a falta.

Como em "A Savana", onde as crianças matam simbolicamente (e depois literalmente) os pais por tentarem interditar o uso do berçário, vemos o colapso da função parental como representante da lei simbólica. Os pais, ao introduzirem o limite, tornam-se alvo de uma fúria pulsional que não encontra espaço na linguagem.

Birman afirma que vivemos tempos de intolerância à perda, onde não se pode mais sustentar a ausência. Quando o celular — símbolo máximo do “tudo agora”, do prazer imediato e da fuga do real — é retirado, o sujeito não se depara com a falta, mas com o desamparo radical, com a dor crua que não sabe nomear.

Frente a esse cenário, o trabalho psicanalítico se oferece como espaço de reinvenção do laço simbólico — como práticas que convidam o sujeito a elaborar a dor da falta. Esses dados atuais não são apenas fatos isolados, mas expressões das vicissitudes de um adoecimento coletivo. Como psicanalistas, o nosso trabalho é criar espaços onde seja possível propiciar espaço para o sonhar, elaborar a perda, simbolizar o mal-estar e transformar o ato em palavra, a dor em criação e o silêncio em escuta. Espaços cada vez mais essenciais no meio da savana digital.

Carla Belintani é psicanalista e integrante dos grupos de trabalho “Psicanálise e Cultura” e “Sobre o envelhecimento” do  Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae. É membro do projeto A Casa Frida - Luto, Arte e Psicanálise

Referências bibliográficas

BIRMAN, Joel. O sujeito na contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.

BRADBURY, Ray. A savana. In:     . O homem ilustrado. Tradução de Eric Novello. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2020. p. 23–42.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In:Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 67–148.

TELLES, Sérgio. Observações sobre ética em psicanálise. Psicologia Clínica e Cultura – POL Brasil, set. 2017. Disponível em: https://www.polbr.med.br/ano17/psi0917.php. Acesso em: 28 jun. 2025. 

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon

Não fui eu, não fui eu, não fui eu...

Sobre Silvios e Anieles