Cenas da ditadura. Um encontro no cine Bijou

Em meio às sessões do STF que julgou e condenou Jair Bolsonaro, o “Ciclo de Cinema e Psicanálise nas brechas” exibiu no último dia 14, o filme “Batismo de Sangue” de Helvécio Ratton, baseado no livro de Frei Beto que na época recebeu o prêmio Jabuti. Laurinda escreve trazendo lembranças que não devem ser apagadas, dos sombrios tempos da ditadura militar. Confiram!

 

CENAS DA DITADURA. UM ENCONTRO NO CINE BIJOU

M. Laurinda R. Sousa

14 de setembro de 2025. Cine Bijou. Mais um dia do ciclo Cinema e Psicanálise nas brechas.

Tenho muitas lembranças do cine Bijou; cinema alternativo dos anos 60,70. Espaço de resistência onde se juntavam estudantes, militantes, artistas. Lá assisti os filmes de Buñuel, de Godard, Bergman, Truffaut. Lá os encontros foram lugar de respiro e de troca sobre o que acontecia no país.

Hoje a proposta é a exibição do filme Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, baseado no livro de Frei Beto, do mesmo nome, publicado em 1982.  O livro recebeu o prêmio Jabuti em 1983 sendo considerado o melhor livro de memórias daquele ano.  

Em seguida, um debate com a presença de Joaquim Bastos, engenheiro e ativista político nos anos de chumbo, e Maria Cristina Ocariz, psicanalista, professora do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise que atuou na Clínica do Testemunho da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2017). Na mediação, Luciana Chauí, que faz parte do grupo organizador desses encontros.

Semana importante em que acompanhamos com expectativas e esperanças, o julgamento necessário dos responsáveis pela tentativa de Golpe de Estado que culminou nos atos vandalistas de 8.1.2023. Aos que tentaram insistir na ilegitimidade desse julgamento e na negação das violências cometidas, as palavras de Alexandre de Moraes, de Flávio Dino, de Carmen Lúcia e Cristiano Zanin deixaram evidente o comprometimento de todos os réus e principalmente de seu mandante, e a necessidade de suas condenações.

Se inicio falando sobre a atmosfera dessa semana é porque assistir hoje ao filme que nos coloca frente a frente com a crueldade da violência da ditadura, nos faz reviver os acontecimentos dessa época e ressignificar sua importância. Importância do resgate da memória e do que tantas vezes repetimos: “Para que não mais aconteça” e para a reafirmação de uma luta que não terminou: “Ainda estamos aqui”.

No filme acompanhamos os movimentos estudantis, os códigos para não serem descobertos pela polícia inquisidora, a participação dos padres dominicanos que se juntam à Ação Libertadora Nacional, sob a liderança de Carlos Marighella. Nas cenas, as pixações são a denúncia do clima reinante naquela época: perseguição aos chamados “terroristas”, ameaças aos “padres comunistas”.  Revemos as prisões, a tortura, as infiltrações dentro dos grupos revolucionários. O horror de, na prisão, testemunhar os gritos, os que chegavam ensanguentados, as ameaças de que seriam os próximos. A delação conseguida pela violência extrema levando ao assassinato de Marighella em 1969. Efeito, também, do rompimento de um acordo prévio entre eles: Marighela havia dito que sairia de cena por um tempo. Eles sabiam que quando alguém caia, ou um ponto era descoberto, todos tinham que se movimentar rapidamente para outros lugares.

No comando desse sistema, Sergio Paranhos Fleury, delegado do DOPS, depois ligado ao DOI-CODI. Foi, também, chefe do Esquadrão da Morte. É ele, o perseguidor implacável de Frei Tito, mesmo depois de seu exílio. É ele quem o persegue nas sombras e nas cenas fantasmáticas nos lugares que lhe dão acolhida, mas não são suficientes para acalmar seu sofrimento. Seu suicídio é um assassinato. Uma responsabilização do Estado. Uma denúncia ainda viva de toda essa história.

Depois do filme, uma pausa para uma recomposição possível. Uma espera para que as falas de Joaquim e Cristina pudessem expressar o efeito que essas cenas nos provocam.

Joaquim Bastos iniciou o debate, partilhando seu testemunho. Sua participação no movimento estudantil dos anos 60, os eventos que antecederam a semana do final de março de 64, os passos que tentaram garantir a permanência de Jango no poder e o impedimento do golpe. Falou-nos de sua prisão e sua continuidade na luta pela democracia e pela justiça. Muitas histórias para contar, histórias que precisariam de tempo para serem elaboradas e para não cair no esquecimento.

Cristina trouxe um texto escrito, mas a força do momento a fez falar livremente. Fala de quem viveu histórias semelhantes na Argentina, de quem sabe o que é a experiência do exílio e de quem, no comprometimento com a luta, não se atém a fronteiras nacionalistas. Conta da instalação da Comissão Nacional da Verdade e, depois, das clínicas do testemunho. A tortura, disse ela, quer que o prisioneiro fale, mas também quer que se cale. Cale sobre o que sofreu, sobre o ataque a seu corpo e a tentativa de eliminar seus pensamentos. A clínica do testemunho criou o continente necessário para que o sofrimento pudesse ser enunciado e partilhado. E a verdade fosse dita e reconhecida.

As falas nos colocam questões: Por que pedidos de retorno da ditadura? Por que a memória não chega aos que não viveram essa época?

Marilena Chaui, que estava presente, fala do imaginário de um país não violento, de uma bandeira que não tem as cores das lutas de classe. Penso que esse imaginário é a construção de um mito – mito da beleza de nossa terra, mito de uma escravidão branda, mito de uma anistia branda, de uma ditadura branda. É um mito que possibilita o aparecimento do que se nomeou Mito.

As falas finais de Cristina me ressoaram como possibilidade de restauração: Se frei Tito pudesse ter retornado do exílio, talvez não tivesse morrido da forma que morreu. Teria reencontrado seu grupo, sua pertinência, seu coletivo de luta.

Saí do encontro com a ideia de que um coletivo faz toda a diferença. Que o individualismo nos consome e nos retira a energia de viver.

Saí com o sol iluminando a praça Roosevelt e com gratidão pelo encontro organizado por esse coletivo.

M. Laurinda R. Sousa é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e colunista do Blog do Departamento.


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