O jogo do dominó: Ressonâncias e Reverberações
As autoras relatam como o documentário Ponto de Encontro, apresentado e discutido em atividade realizada pelo grupo Faces do Traumático, possibilitou para a família vítima do terror da ditatura de Pinochet, a construção de uma outra história na contramão da destruição.
O JOGO DO DOMINÓ: RESSONÂNCIAS E REVERBERAÇÕES
Maria Inês Tassinari e Magali Pacheco Simões
“Procuro
despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos.”
Álvaro de Campos
O documentário chileno Ponto de Encontro trata da reconstituição da história de dois amigos - Alfredo e Lucho - que estiveram na mesma cela em Vila Grimaldi, conhecido centro de detenção de presos políticos, à época da ditadura de Pinochet e as repercussões na vida de seus familiares.
Em um evento realizado no último dia 02 de agosto, pelo grupo Faces do Traumático houve a exibição do filme, seguida de um debate que contou com a presença do diretor, Roberto Baeza, de sua companheira a cineasta Paulina Costa, além de alguns personagens retratados no filme, Lucho Costa e Alfredo Garcia, filho de Alfredo Vergara, dado como desaparecido. Clarissa Motta e Flávio Veríssimo, representando o grupo Faces do Traumático e Ana Carolina Vasarhelyi de Paula Santos, Articuladora da área de eventos também participaram da mesa de debate. Após exibição do filme Clarissa apresentou um texto sensível e instigante escrito em parceria com Camila Munhoz. Entre várias questões levantadas por elas, foi salientado o valor inestimável dessa experiência estética para elaboração traumática.
A plateia também foi composta por um grupo significativo de filhos e netos de presos e desaparecidos políticos pela ditadura no nosso país, alguns trouxeram para cena do debate contribuições essenciais.
O documentário é o processo de reconstrução de um tempo de desmonte existencial e extremas mudanças para duas famílias em particular, com suas histórias entrelaçadas ao destino de seu país, nesse duro e sombrio período que afetou todo o continente latino-americano. Numa narrativa muito bem sucedida, o filme mostra as repercussões transgeracionais do engajamento ético e político de dois rapazes, Lucho e Alfredo, que haviam recentemente se tornado pais, num contexto de intensa oposição ao regime ditatorial.
A reconstrução começa a partir da busca de indícios; fotos, memórias fragmentadas como o aceno brincalhão que viria a ser um último adeus, o olhar de despedida do casal antes da separação ao entrar na embaixada, o filho que quer saber se o pai falava dele na prisão. Lapsos de memória a serem preenchidos, indagações jamais feitas e lembranças vívidas como as da cela da prisão, que passam a ser encenadas e revisitadas pelos personagens.
Atores e personagens da história real se entregam na partilha de fatos dilacerantes e dos efeitos destes nos destinos de cada um. Observamos nas reações dos familiares durante as filmagens, como essas consequências traumáticas permaneceram singularizadas na memória, sob diferentes efeitos expressos no choro catártico de Paulina, assim como na adolescência de Alfredo marcada pela agressividade. Memória traumática aguardando tempo, espaço e condição de elaboração oferecida pela vida em algumas oportunidades, como na paternidade para Alfredo, nos encontros em todo processo de tecitura do filme e pelas reverberações nas plateias de diferentes lugares
A reconstrução se dá a partir do desejo dos filhos - Paulina e Alfredo - com relação àquilo que falta conhecer, explicar, entender e elaborar, a respeito dos paradoxos inconciliáveis inerentes à escolha dos pais, entre o amor pelo seus e o dever para com a causa da liberdade e do direito.
E que história seria essa? Com certeza não aquela oficial, das grandes datas, dos partidos, dos embates públicos, mas a de duas famílias, na sua dinâmica de afetos, de silêncios, de palavras não ditas, de segredos, enfim, de traumas que são transmitidos porque não puderam ser elaborados, de lutos que não puderam ser vividos, de alegrias interditadas pela perplexidade da dor, de experiências que não puderam ser pensadas nem compartilhadas.
Nas palavras de Silvia Bleichmar, “o terror opera como uma categoria distinta do susto, da angústia e do medo. O terror se caracteriza porque se sabe o que se teme, mas não se sabe como se defender do que se teme (....) coloca o sujeito numa situação brutal pela impossibilidade de definir de onde vem o ataque”. [i]
Um profundo ataque aos sujeitos na sua integridade psíquica e física, mas também ao tecido social, na sua função de sustentação das condições de pertencimento. “A ditadura que padecemos e suportamos produziu, entre outros efeitos, a destruição dos laços com o semelhante. O medo se converteu na razão com que alguém pode justificar a falta de atenção e a falta de solidariedade com o outro. Se destruiu a noção de semelhante”. [ii]
Na contramão dessa destruição, naquele sábado, o evento propiciou uma articulação de experiências coletivas que pôde contribuir para a construção de outra história, restituiu o que foi usurpado e silenciado, e que pôde ser compartilhado. A memória afetiva e o anteparo testemunhal do coletivo podem reparar, em alguma medida, o que foi rompido socialmente. Tivemos a oportunidade de experimentar pela arte, o que fôra transmutado do terror e da destrutividade, uma obra cuja verdade trágica carrega o poder de gerar comoção, um dos efeitos do trauma segundo Ferenczi [iii]. Mesmo num impacto fracionado, a produção artística, portanto, simbólica, nos fez ver as marcas do traumático, o que o tempo não corroeu e ficou como precipitado de tantas mortes reais. O filme ousou raspar a tinta espessa de silêncio acumulado nos 40 anos de Paulina e Alfredo, e de inúmeros parentes igualmente vitimizados.
Nesse contexto, a plateia pôde se emocionar, chorar, lembrar, atualizar as suas próprias vivências ao empatizar com aqueles personagens e suas dores, suas dificuldades, sua coragem, suas fraquezas e luminosidade, em particular com a escolha radical de Lucho e Alfredo.
Que ideal justifica a escolha feita pelos dois personagens? É impossível saber. Podemos arriscar uma conjectura: um além de si, além de tudo o que veio antes e poderá vir depois, uma vida ofertada pelo vir a ser de um país, o desejo de mudar a história de inúmeras famílias e não só da sua, de muitos destinos, não só do seu. Seria a força de uma escolha ética pelo coletivo, um anteparo psíquico para se colocar no risco impossível de ser dimensionado? O que é preciso ter para suportar não ter? Para a psicanálise a resposta seria: é preciso ser. Como continuar sendo? Alfredo e Lucho confinados numa cela minúscula, usaram pedaços de jornal cortado em pequenos retângulos para criar um jogo de dominó.
Com Winnicott[iv] podemos ver o brincar como continuidade do ser e a criatividade como um derivado dessa condição no adulto, a criatividade como a posição ativa diante dos efeitos das experiências vividas, a criação do sentido do mundo e de si mesmo. Apesar do clima de medo, os companheiros de cela, continuavam criando e se protegendo mutuamente.
Conforme vimos no filme, eles investem na construção de uma profunda amizade, apesar do pouco tempo de convívio, evidenciada no abraço após a sessão de tortura, na parceria divertida durante o jogo e na separação dos dois, quando Alfredo pede que Lucho transmita para família seu amor. Pelo laço afetivo não sucumbiram ao esvaziamento de quem eram, havia pulsão de vida em meio aos escombros do desmoronamento da dignidade. Amar, brincar e conversar em condições cruéis foi resistência ao aniquilamento, legado dos que fizeram a escolha pela liberdade e expansão da condição humana.
A plateia, mesmo sem saber previamente, fez parte de um certo ritual coletivo, como partícipes e testemunhas na travessia do “vale da sombra da morte”, um dispositivo para esse percurso, entrar e sair do terror, dar nome para o efeito das perdas, simbolizar.
Como em “Além do Princípio do Prazer” [v], a criança ao jogar com o carretel tentava sair da posição passiva diante do sofrimento causado pela ausência da mãe e criava uma condição possível de continuar existindo, para além da dor, através do jogo do “Fort-Dá”.
Apesar de toda dor intransponível, impenetrável e invisível impetrada pela crueldade daquele momento histórico, o evento permitiu uma outra vivência. No final da exibição, o diretor Roberto e Paulina foram recebidos em pé com aplausos intensos, um abraço de profunda comunhão. O prazer dessa cena pós-filme, se assemelha à recepção dos heróis que conseguiram concluir um grande feito. Os aplausos, com todo o corpo dos presentes voltados na direção deles, pareceu ao mesmo tempo descarga da dor sentida ao longo do filme e prazer por terem conseguido ir além da dor, existe um além que não é a morte e que é engendrado pela identificação.
As participações e intervenções da plateia foram fundamentais, incluindo a dúvida quanto aos limites da psicanálise clássica para lidar com os efeitos traumáticos dessas experiências. É fundamental escutar que o trágico pode se manter em escutas obturadas pela falta de percepção dos limites do método para lidar com os efeitos traumáticos, que não se dão exclusivamente no âmbito intrapsíquico. O trauma nunca se dá fora do contexto social, seus efeitos não podem ser metabolizados sem contarmos com dispositivos coletivos de escuta e reparação.
Toda presença ali contou, fez diferença e compôs a experiência de potência do coletivo, em um encontro capaz de abrir os baús das percepções, da construção e restituição da memória, da luta contra o autoritarismo e da esperança num país melhor, desejo constitutivo do SEDES e do Departamento de Psicanálise, nosso legado reinvestido hoje, na cena de encontro entre Brasil e Chile, Sedes e a Psicanálise que desejamos.
O jogo de dominó representa a resistência e a insubmissão ao algoz e também aquilo que Lucho pode carregar de seu amigo Alfredo, e, embora não soubesse o destino que daria a essa espécie de amuleto, ao final de muitos anos, compartilhou as peças do dominó de jornal com a família de Alfredo, o jogo que escondeu entre os dedos ao sair da prisão e que contribuiu para que permanecessem em alguma medida, sãos em seu confinamento. É interessante notar que um outro jogo, com resultado muito parecido, ocorre depois de 40 anos, na realização do filme. Além do jogo de dominó, que inicia e termina o filme, um outro elemento lúdico é acionado na construção da narrativa. O documentário “joga” hora com a dramatização, ora com o relato, e, por meio de ambos, alcança o mesmo “efeito dominó”, ressignificando o horror por meio da simbolização. Lá, no dominó. Aqui, na arte.
Maria Inês Tassinari, Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP. Co-Coordenadora do Grupo Faces do Traumático. Integrante do GTEP - Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise.
Magali Pacheco Simões,
Psiquiatra com formação na UNIFESP, Mestrado na área de dependência química e
HIV, Psicanalista com formação no Departamento de Psicanálise do Sedes. Fez
parte do grupo de Psicossomática da UNIFESP/Departamento de Psiquiatria
2018-2020. Membro do grupo Faces do Traumático desde 2019.
[i] Bleichmar, S., Horstein, L., Lewkowicz, I.– Conceptualización de catástrofe social. Límites e encrucijadas. Clínica Psicoanalítica ante las Catástrofes Sociales – la experiencia argentina (2003) – Editores Daniel Waisbrot, Mariana Wikinski. Buenos Aires. Paidós Argentina.
[ii] Idem
[iii] Ferenczi, S. – Reflexões sobre o Trauma. Obras Completas Psicanálise IV (1992) – São Paulo, SP: WMF Martins Fontes Ltda, 2011.
[iv] Winnicott, D. – O Brincar e a Realidade (1971) – Psicanálise: Obras escolhidas. Rio de Janeiro, RJ. Imago, 1975.
[v] Freud, S. – Além do Princípio do Prazer (1920) - Obras Completas, 14. São Paulo, SP. Companhia das Letras, 2010.
Parabéns, companheiras!
ResponderExcluirBelíssimo texto