Oito psicanalistas brasileiras e os segredos de Pachacámac

Lima é uma porta de entrada fascinante para as camadas profundas da história da América, onde o passado pré-hispânico ainda pulsa. Visitar suas “huacas” ou sítios arqueológicos, muitos deles ainda preservados, é uma grande aventura. No clima da Flappsip que ocorreu nesta cidade nos dias 16, 17 e 18 de outubro último, Maria Silvia Borghese nos premia com um destes relatos. Confira:

  

OITO PSICANALISTAS BRASILEIRAS E OS SEGREDOS DE PACHACÁMAC

Era véspera do XIII Congresso Flappsip e estávamos perambulando por Lima já há alguns dias. Cidade encantadoramente familiar, lembra São Paulo em algumas de suas largas avenidas. Tem ainda um certo ar praiano do Rio. No entanto, mostra-se muito potentemente em toda sua riqueza civilizatória, em sua latinidade e pela força do seu povo limenho/andino. São muitas camadas a explorar, como aliás seria a nossa tarefa de mergulhar, no dia seguinte, nos mais de 150 trabalhos a serem apresentados por psicanalistas da América Latina no Congresso.

Fomos, então, Lilian Carbone, Lilian Quintão, Maria de Fátima Vicente, Maria Inês Tassinari, Marina Singer, Miriam Chnaiderman, Nana David e eu, explorar outras cercanias, adentrando a Grande Lima. Queríamos conhecer o Sitio Arqueológico de Pachacámac, um dos mais importantes centros religiosos e administrativos da antiga costa peruana, a 30 km ao sul de Lima, no vale do rio Lurín.

No caminho, mais semelhanças e diferenças. Atravessamos uma periferia densa, por uma estrada que nos trazia uma referência misturada entre a Rodovia Raposo Tavares e o caminho de Cubatão, SP. A região é ainda coalhada de indústrias de cimento e refinarias de petróleo. Tudo tinha apenas um único tom de cinza, tudo muito cinza e também bastante pobre. Nada nesse caminho nos empolgava, o dia também estava bem nublado e cinzento. Finalmente, chegamos a Pachacámac, mas o tom não mudou, o sítio é encravado em um deserto também cinzento e sombrio, região bastante inóspita. Além de tudo, fazia frio, ventava.

Psicanalistas têm certa intimidade com zonas cinzentas, não é? Lá chegamos. Agora sim, um pouco mais empolgadas e curiosas. A nós se juntou Silva, um homem doce e pacato, vestindo uma roupa bege e cinza, portando um típico chapéu... cinza. Não tinha jeito, essa era a cor do dia, até da minivan que nos conduzira.

Ainda bem que Silva era muito mais que um homem cinza, pois começou a nos apresentar aos segredos de Pachacámac com muita sagacidade e conhecimento histórico/político. Seu tom de voz suave e baixo aos poucos foi nos capturando, os segredos de Pachacámac começaram a surgir.

O local foi ocupado por várias culturas ao longo de quase 1500 anos, desde cerca de 200 d.C. até a chegada dos espanhóis em 1533. As primeiras construções são atribuídas à Cultura Lima, mas Pachacámac se tornou especialmente importante sob os Ichma (ou Ychsma) e depois sob o Império Inca. O nome “Pachacámac” vem do quechua Pacha Kamaq, que significa “aquele que dá vida ao mundo” ou “criador da terra e do tempo”. Ele era um deus criador e oracular, temido e reverenciado por diferentes povos andinos. As pessoas vinham de longe para consultar seu oráculo e fazer oferendas.

O complexo cobre mais de 600 hectares, sendo que apenas algo entre 15 e 20 por cento do terreno foram efetivamente escavados, revelando segredos de guerras e dominação das sucessivas civilizações, que escondem mortes, assassinatos e exploração, sobretudo das mulheres. Estima-se que mais de 300 mil corpos se encontram soterrados na areia do deserto em Pachacámac, muitos fragmentos de ossos humanos podem ser avistados a olho nu. Esse cinza constante e insistente não nos abandonou durante todo o trajeto. A história de povos inteiros foi soterrada, pois quando os espanhóis colonizadores chegaram, já não se tratava mais do domínio de uma civilização pela outra, por via da incorporação ou introjeção de seus costumes, permitindo o registro das existências. Quando os incas conquistaram a região, no século XV, não destruíram o santuário — ao contrário, o integraram ao seu sistema religioso. Eles construíram novos templos e mantiveram o oráculo funcionando, o que mostra a importância espiritual do local para todo o império. Os povos europeus colonizadores, contudo, trabalharam pela extinção, desaparecimento e soterramento das civilizações que já habitavam a região há séculos.

Foi uma visita inusitada, um pouco decepcionante, desestimulante até. Embora tenhamos chegado de volta aos hotéis relativamente cedo, a tempo de outros passeios, a maioria de nós preferiu se recolher em seus quartos. Frases do Silva que ecoavam em nossas conversas: as mulheres consideradas mais bonitas eram mortas e oferecidas para os deuses ou confinadas em palácios vigiados por eunucos para se casarem com os grandes senhores, que chegavam a ter trezentos filhos; as consideradas feias eram praticamente escravizadas nas lavouras. Pois é: tudo muito cinza.

As civilizações que habitaram a região andina não deixaram de ser violentas e cometer sacrifícios e assassinatos, mas algo da reverência a seus mitos e deuses salvaguardou um acervo histórico e civilizatório riquíssimo. Atualmente, Pachacámac possui também um museu. As escavações continuam revelando novas informações sobre as culturas costeiras do Peru pré-hispânico. O museu inaugurado em 2016, exibe artefatos, tecidos, cerâmicas e a famosa estátua do deus Pachacámac, recuperada em escavações modernas, que trazem esperança de que alguma reparação ao menos histórica continue a ser feita.

A nós, psicanalistas brasileiras, que passamos quatro horas em Pachacámac, restou a analogia inevitável de Freud entre psicanálise e arqueologia. A força dessas escavações está em revelar as camadas da formação dos povos e das sociedades, permitindo que nossa imaginação consiga recuperar em parte o espectro de cores mais vívidas dos ancestrais latinos, tornados cinzas pelo soterramento.

Prontas para o Congresso.

Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro do Departamento de psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Departamento. É autora dos livros “O tempo e os medos” (2017) e “Depressão & doença nervosa moderna” (2024), ambos da Ed. Blucher. É colunista do Blog do Departamento.


Comentários

  1. Parabéns Maria Silvia, por relato tão interessante!
    Abraço

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  2. Silvia, muito interessante seu relato e suas impressões sobre uma civilização soterrada! Despertou minha curiosidade de saber sobre nossso irmãos peruanos. Abraço

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  3. A tonalidade era cinza mas seu relato é vivido. Anuncia uma história cheia de outras histórias, muitas ainda esperando o sol amarelecer

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