Cenas do cotidiano
Laurinda nos presenteia com uma sensível poesia sobre o sofrimento cotidiano das crianças que vivem a violência da guerra.
CENAS DO COTIDIANO
Com olhos de águia sobrevoei a Terra.
Vi crianças estendidas no chão de madeira.
Escondidas atrás da cama.
Braços cobrindo a cabeça.
Vislumbro nelas o medo.
O terror do que acontece lá fora.
O terror das balas que podem eliminá-las.
Elas sabem.
Conhecem o barulho dos estampidos, dos gritos, das correrias.
Vi a menina pisando devagar os escombros.
Olhar atento.
Com um pequeno galho, pá improvisada, tenta levantar as pedras, a ramagem da árvore caída.
Vasculha ao redor. Procura. O quê?
Agachou-se. Com as mãos esgaravata a terra.
Retira com delicadeza o corpo da pequena boneca.
Acalentou-a.
Na rua deserta, só poeira e entulhos.
Chorou.
Vi meninos correndo para dentro da viela.
Depois, tiros. Bombas.
Gritos vindos das janelas chamam por eles.
João, Omar, Agoth, Hassan, Jibril... São tantos os chamados. Em tantas línguas.
Deles, não se ouvirá mais respostas.
Vi crianças cegas tateando caminhos.
Faixas ensanguentadas sobre as cabeças.
Vi pequenos corpos amputados.
Apoiados em cadeiras de improviso.
Vi crianças esfomeadas batendo nas grades que as separam da comida.
Vi crianças quietas. Emudecidas. Olhar vago. Distante. Inexistentes.
Vi pais dilacerados puxando carroças mambembes com o que restou de suas famílias.
Escutei em todos os lugares, o eco das palavras do poeta:
“Pense nas crianças mudas telepáticas. Pense nas meninas cegas inexatas...”
Que futuro poderão ser sonhados? Por elas? Por nós?
M. Laurinda R. Sousa é psicanalista, escritora e colunista do Blog do Departamento.
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