Sobre o trabalho “Uma clínica extramuros. Habitando a ternura, construindo um sujeito ético” de Diego Lain Blanco Diaz, ganhador do concurso Jorge Rosa

Ainda embalados pelas boas ressonâncias do congresso FLAPPSIP, Fernanda Borges nos presenteia com um belo texto sobre a inspiradora apresentação de um jovem chileno.

 

SOBRE O TRABALHO “UMA CLÍNICA EXTRAMUROS. HABITANDO A TERNURA, CONSTRUINDO UM SUJEITO ÉTICO” DE DIEGO LAIN BLANCO DIAZ, GANHADOR DO CONCURSO JORGE ROSA[1]

por Fernanda Borges*

O jovem psicanalista chileno inicia sua apresentação protestando contra a ideia defendida na conferência do final da manhã de que clínica psicanalítica e política não se misturam. Sua formação marcada pela experiência na Clínica La Borde, pela Psicoterapia Institucional, pelo conhecimento da Maison Verte e sua prática clínica extramuros, lhe diziam o contrário.

Seu texto toma como ponto de referência a pergunta feita por Derrida: “onde começa e onde termina a crueldade?”[2]. Articula algumas ideias, cita alguns autores (Laplanche e Silvia Bleichmar) e nos descreve uma situação clínica ocorrida numa Casa de Acolhimento de crianças entre 0 e 6 anos e seus pais, instituição inspirada na Maison Verte[3].

Num espaço de convivência da Casa, Diego – o jovem psicanalista – conversa com uma mãe enquanto sua filha e outras crianças brincam. A mãe lhe conta assustada sobre a consulta com o neurologista que havia examinado sua filha e a diagnosticado como um determinado transtorno psíquico. Ao mesmo tempo a menina que brincava por ali cai no chão, começa a chorar e assim permanece – estatelada no chão a chorar. A mãe não reage. O psicanalista lhe faz um convite: “Sua filha está chorando... o que você acha de irmos até ela e vermos como está?”. A mãe aceita, vai até a filha, a pega no colo e a consola. A menina volta a brincar e a conversa entre a mãe e Diego prossegue. A filha cai novamente; dessa vez chora e olha na direção da mãe. A mãe vai até ela, a pega no colo, passa sua mão onde está machucado e cantarola “sana, sana colita de rana, si no passa hoy, pasará mañana”. Ela volta a brincar, os dois voltam a conversar. A menina cai uma terceira vez, chora e grita “mamãe, mamãe!”. Uma outra mãe, que também frequenta a Casa e estava por ali diz: “É a primeira vez que ouço sua filha te chamar de mamãe!”. O menino que brincava com a filha, olha para a mãe da menina e diz “Vá logo dar um carinho nela, para que ela pare de chorar e volte a brincar comigo”. A mãe se dirige à filha, e emocionada, diz não saber se a filha nunca a havia lhe chamado de “mamãe” ou se ela nunca a havia escutado.

Diego Lain Blanco Diaz encerra seu texto levantando uma possível resposta para pergunta de Derrida: a crueldade talvez termine quando a ternura puder lhe dar um limite.

Todas as pessoas ali presentes ficaram comovidas. Por isso, porque havia poucos brasileiros na sala e por ter sido o trabalho que ganhou o concurso Jorge Rosa, senti vontade de compartilhar neste espaço do Blog. Poderia parar por aqui, na esperança de ter conseguido transmitir através desses fragmentos de memória algo do encanto produzido na audiência e em mim. No entanto, irei prosseguir com algumas considerações pessoais que espero não minimizem de todo essa primeira intenção.

Diego mencionou no início sua afinidade com a Psicoterapia Institucional[4]  e sua experiência em La Borde e evocou em mim lembranças de um tempo dedicado ao estudo e à prática de saúde mental, em que a instituição podia ser tomada e compreendida como um meio de tratamento em si. Nesta perspectiva, os espaços de convivência institucionais e seus dispositivos (grupos, atividades, organização e gestão do cotidiano) se constituem enquanto objetos de investimentos libidinais, de ligação com a realidade externa e de suporte de múltiplas transferências. A Psicoterapia Institucional é uma corrente apoiada num amplo conjunto de práticas e conceitos dentre os quais gostaria de destacar aquilo que se convencionou chamar de “técnica da ambiência”. A noção de ambiência comporta a ideia de um clima ou de uma atmosfera criada a partir daquilo que ocorre na dimensão do entre: entre o sujeito e o espaço, o sujeito e o outro e o sujeito e si-mesmo. No nível dos encontros e dos acontecimentos singulares e inesperados emergem e circulam sentimentos e afetos fundamentais à vida e à produção de subjetividade. Por isso, quando falamos em ambiência, estamos falando também em qualidade de presença.  Podemos vislumbrar tais ideias como pano de fundo da cena descrita.

Em relação à descrição em si, observamos o contraste entre a consulta médica neurológica caracterizada pela relação hierárquica vertical e rígida entre médico e paciente em que mãe e filha são tomadas por objetos do saber médico e o acolhimento que as pessoas encontram enquanto sujeitos na Casa.  A mãe fala sobre seu choque frente a informação acerca do diagnóstico da filha. Na relação interpessoal com o terapeuta identificamos de imediato a possibilidade de escuta e reconhecimento do impacto e do efeito desorganizador provocado pelo diagnóstico da filha. Essa mãe parecia alheia aos acontecimentos ao seu redor. O terapeuta, numa delicada intervenção, a convida a olhar para a filha caída e a imaginar como a filha se sentia (por que será que ela chora?) e o que poderia fazer a partir da interpretação da percepção da menina inerte no chão a chorar. O recorte da realidade feita pelo analista, transforma um fato numa percepção e, em seguida, num acontecimento passível de simbolização (“minha filha se machucou e precisa de amparo”). Na mesma linha, intervém a outra mãe presente e o menino companheiro de brincadeira.

Obrigada Diego! Foi um prazer assistir sua apresentação entusiasmada e lembrar que em diversos momentos da história e em diferentes lugares do mundo existiram e existem pessoas que apostam na potência criativa e curativa da convivência, da coletividade e de Eros. Obrigada por me fazer recordar de autores e experiências tão caras a mim no início de minha prática profissional! Deixei Lima carregada de esperança!

*Fernanda Borges é psicóloga, mestre em Psicologia Social pelo IP-USP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae.

 


[1] O concurso Jorge Rosa é organizado pela Flappsip a cada congresso e tem o objetivo o desenvolvimento acadêmico e a participação de estudantes em formação. O relato do trabalho premiado este ano “Uma clínica extramuros. Habitando a ternura, construindo um sujeito ético”, de Diego Lain Blanco Diaz, é somente um relato, baseado na minha memória pessoal de quem ouviu a apresentação sem tomar notas; uma memória que falha, que distorce e que preenche as lacunas. Ou seja, não se trata aqui de uma reapresentação do trabalho, mas daquilo que me marcou.

[2] “Os Estados d’alma da psicanálise: o impossível para além de uma soberana crueldade”

[3] Maison Verte, espaço de acolhimento de crianças e suas famílias fundada por Françoise Dolto em Paris em 1979

[4] A PI surgiu na França, nas décadas de 1940 e 1950 como parte de um movimento de reforma psiquiátrica. Um de seus pressupostos era que o ambiente podia favorecer o desenvolvimento ou adoecimento dos sujeitos. Uma das ideias principais é que o ambiente de tratamento pode curar, por isso, o foco baseava-se na dinâmica institucional e na participação ativa dos pacientes nesse processo.

 


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