Mil homens são para um filho... e uma despedida
Maria Silvia Borghese faz um lindo e sensível texto sobre o filme O filho de mil homens, inspirado no belo livro de Valter Hugo Mãe. No final de seu texto, se despede de seus muitos anos de professora do curso de Psicanálise do Departamento. Confiram.
MIL HOMENS SÃO PARA UM FILHO... E UMA DESPEDIDA
A delicadeza e a beleza da humanidade são os principais destaques do filme O filho de mil homens, dirigido por Daniel Rezende e baseado no poético livro de Valter Hugo Mãe. Aliás, trata-se de pura poesia. Livro e filme nos transportam para lugares e tempos perdidos entre os interstícios da vida que levamos, baseada em modos de existência que compramos sem questionar e que nos submetem a uma corrida, na maior parte das vezes, encenada a partir de valores distorcidos, manipulados. Ah, a arte! Arte em seu sentido mais elevado.
Que sorte a nossa sermos apresentados a Crisóstomo. Um homem meigo, de espírito translúcido, que aprendeu a transformar a dor em poesia, a expulsar as mágoas com gritos direcionados ao universo, a se apaziguar. Sua vida é uma homenagem e uma reverência à mulher que lhe deu à luz e à natureza que o circunda, com a qual troca seu trabalho pela possibilidade do viver. Mas ele sabe também da importância da transmissão, da dedicação a um outro e anseia por um filho. Do pouco (quase nada) que recebeu, tem muito para dar. Uma doação suave, silenciosa, intuitiva... tão maravilhosamente humana. Os sonhos vão sendo sonhados e, sonhados de maneira compartilhada, vão se materializando, tornam-se realidades mágicas, ajudam a construir famílias, os quase felizes. Não, não precisamos da ideia de felicidade plena vendida tão funestamente em prateleiras da vida capitalista. Podemos ser quase felizes, podemos prescindir de fatos e feitos buscados nas corridas pelo ouro, pelas heranças consanguíneas. Existem outras e diversas formas de existir.
Interessante que o livro já havia me tocado bastante. Que livro! Assim, fui ver o filme meio desconfiada, virando o olho, porque por vezes os filmes baseados em livros nos decepcionam. No entanto, para minha surpresa, o filme, sem nenhuma preocupação ou pretensão de reproduzir o livro, coloca-o na tela com muita inspiração, mantendo o mesmo espírito poético, seu ritmo, seus silêncios. E essa poesia, ali na tela, captura, envolve, faz bem. Corro o risco de ser piegas, mas o filme é um bálsamo. Assisti duas vezes em um intervalo de uma semana porque, da primeira vez, saí do cinema encantada com tantos pedacinhos brilhantes do filme que flutuavam pela minha mente. Senti vontade de me encontrar com eles uma vez mais.
Em tempos de tantos feminicídios nos sufocando e entristecendo, encontrar Crisóstomo é um alento. Encontrar Isaura, Antonino e o menino
Camilo, que traz em sua história as mães que lhe doaram a vida é experimentar uma realidade na qual mães e pais que a vida vai nos apresentando podem vir a nos amparar, incentivar, sem cobranças, sem violência, deixar existir. Dane-se a biologia, dane-se a propriedade, dane-se a posse. Poder estar junto, em comunidade, honrando a vida. Quanta dignidade, quanta ética, quanta poesia. Quero sempre poder me encontrar com esse lado da humanidade.
O filme desfila pela tela a experiência de falta e de dor das personagens, acompanhadas de forte movimento em direção à vida. Pessoas simples, comuns, mas que carregam um forte desejo de existência, de que algo novo possa se apresentar, salvar. Os encontros vão se sucedendo, os laços sendo tecidos. Crisóstomo deseja ser pai e Camilo o ensina a sê-lo. E ele vai se tornando o pai, ensinando amor e tolerância, dando espaço. ‘Onde você aprendeu tudo isso? Com você.’ Troca que comove tanto.
Um a um, os renascimentos de cada personagem vão sendo revelados, que vão assim ressurgindo a partir de um profundo respeito pelo que cada pessoa é e pode vir a ser. O filho de mil homens nos lembra com doçura, com poucas falas e muitos silêncios, que a vida pode correr ao largo, de muitas outras formas, mais solta, a partir da riqueza surpreendente que cada um carrega, ainda que forjada nas falhas, nos tropeços, nas mágoas, no trauma.
Vale sempre se aventurar, ainda que a aventura seja sutil, discreta, vagarosa. Mas que seja sempre uma busca genuína, visceral, nascida dos silêncios e, sobretudo, do desejo. É o gesto, a intenção de abrir espaço dentro de si para que a vida circule, para que o outro entre. O filho de mil homens nos convoca a ser poeticamente humanos.
E agora, a despedida.
Somos muitas pessoas ao longo da vida, formamos muitas famílias, encontramos mães, pais, irmãos e irmãs em nosso caminho que, esperamos, seja longo. Essas famílias nos amparam, nos reasseguram, mas também nos permitem partir. Elas sempre estarão lá, porque impregnaram nossa história, irreversivelmente. Depois de 28 anos dando aula no Curso Psicanálise, decidi soltar a mão dessa família tão potente e querida, vontade de sair por aí, encontrar novos caminhos ainda incertos, despretensiosos, vagar nas aberturas do tempo, nas fendas do espaço, nessa busca da quase felicidade, nesse jeito de poder olhar para o lado e simplesmente dizer um oi a quem aparecer. Carrego uma gratidão tão funda que vai me alimentar para sempre. Certeza de que os amigos estarão sempre ali na torcida e acessíveis quando eu precisar. Assim, vou para outras paragens, próximas ou distantes, ainda não sei, abrindo espaços para que mais gente possa entrar, contribuir e fazer sua história também. Sei que também vou ficar triste e enfrentarei meus medos. Mas vou na certeza de que sempre encontrarei uma pedra em uma praia linda ou uma montanha onde possa subir e simplesmente gritar. Fui.
Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro do Departamento de psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Departamento. É autora dos livros “O tempo e os medos” (2017) e “Depressão & doença nervosa moderna” (2024), ambos da Ed. Blucher. É colunista do Blog do Departamento.
Que lindo texto! Assisti ao filme domingo e gostei muito quase tanto como o livro. Compartilho das suas expressividade. Que o novo caminho seja cheio de boas surpresas e invenções.
ResponderExcluirTexto lindo e poético, ressoa a beleza do livro e do filme. Sobre a despedida, bons voos, Silvia! Volte sempre, para contar, contar por onde anda, matar as suas e as nossas saudades!
ResponderExcluirTexto lindo e poético, ressoa a beleza do livro e do filme. Sobre a despedida, bons voos, Silvia! Volte sempre, para contar, contar por onde anda, matar as suas e as nossas saudades!
ResponderExcluirBelo texto, Maria Silvia. Tão delicado e sensível como o filme e o próprio livro. valter hugo mãe faz parte dos autores em que reconheço o som poético de uma linguagem muito conhecida na minha história. Que os novos caminhos sejam de bons encontros. bjs
ResponderExcluir