Destinos nefastos

Final de ano chegou!  Nossa última postagem traz o texto de Gisela Haddad, cinéfila e psicanalista, sobre dois grandes filmes lançados em 2025. Mannas, de Mariana Brennand, retrata a triste realidade das mulheres e meninas da comunidade ribeirinha da Ilha de Marajó. Uma Batalha Atrás da Outra, de Paul Thomas Andersen, é uma sátira do momento político atual. Vale a pena conferir as impressões de nossa colega e, se você ainda não assistiu, anotar a indicação para ver nos próximos dias de folga. Boas festas e até 2026!

 

DESTINOS NEFASTOS

 

Dois filmes recentes. Duros, difíceis, atuais.

1-    É quase impossível assistir “Manas”, o filme de Marianna Brennand, sem ser tomado por um sentimento de pesar diante da realidade nua e crua que ele expõe. Um Brasil profundo. O projeto, concebido inicialmente como um documentário, transformou-se na construção de um filme-espelho, capaz de registrar sem filtros, o que ali é vivido como norma. Não seria possível revelar a identidade das meninas. Assim é ainda, o universo das mulheres. Talvez as cenas mais doídas sejam as que mostram a dor, a tristeza e a impotência de Danielle, mãe de Tielli - como é chamada Marcielle, 13 anos, protagonista do filme. É nas comunidades ribeirinhas da Ilha de Marajó, entre as florestas do Rio Tajapuru – paisagem lindíssima com suas imensas seringueiras, jatobás e samaumeiras centenárias - que Tielli terá que desvendar por conta própria, o que não pode ser dito. Ninguém lhe informa sobre o sangramento inesperado. Nos cadernos da escola, os temas que explicam o funcionamento dos órgãos sexuais femininos estão grampeados. Nada sobre o destino de Cláudia, sua querida e saudosa irmã mais velha, que assim como sua mãe, foi embora de sua casa (pertencer) viver com outro homem. Ela ainda não sabe, brinca com os irmãos, ajuda sua mãe com as roupas, na venda do açaí, mantém um altarzinho secreto na floresta, onde guarda a foto da irmã mais velha entre outras coisas pessoais. Mas a barriga da mãe está crescendo e em breve ela será procurada pelo pai. Não será consultada, nem haverá alternativas. A regra se repete, definindo um destino comum, assim como ir à balsa, onde homens as pagam para ter um pouco de prazer. É notória a conspiração do silêncio entre a escola, a igreja e as famílias ao manter inscientes, indefesas e vulneráveis as meninas da área. Tielle se revolta. Tenta despistar o pai. Confronta a mãe, que a ouve em silencio, impotente. Decide escolher seu futuro, e o de sua irmãzinha. Resolve quebrar a violência dos protocolos. Fim de cena.

Para conferir: As Manas

Diretora: Marianna Brennand Fortes

 

2-    “Uma batalha atrás da outra”. Fui desavisada, propositalmente, assistir ao novo filme de Paul Thomas Anderson, fã que sou de seus filmes geniais, que trafegam entre o drama e a sátira, e retratam não só os dilemas familiares complexos, as ambições exageradas, os embates religiosos e políticos, mas as peculiaridades do “american way of life”.  Estava curiosa pelo título “Uma Batalha Após a Outra”. Surpreendente. Além de sua peculiar leitura da sociedade contemporânea, há nessa narrativa a sátira caótica, sem que se perca a ironia nem a profundidade do atual momento político do mundo. Passeia-se pelo ridículo, absurdo, humorístico, e mortalmente sério ao mesmo tempo em que acompanhamos a história de uma família em sua tentativa de manter o amor entre seus membros. Tudo ao som da trilha sonora de Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead. Aqui e ali, as idiossincrasias da cultura norte-americana, desde cenas de um western contemporâneo em uma das melhores perseguições e suspense nos altos e baixos de uma estrada tortuosa, até a cena de famílias migrantes enjauladas, a crueldade policial na eliminação de qualquer cheiro de subversão, a pureza racial como catalisador de sangue. Sean Penn, encarnando nossos fascistas atuais, desprovidos de quaisquer valores, patéticos, cafonas, fantoches de si mesmos. Brilhante em sua atuação, assim como Leonardo DiCaprio e Benicio Del Toro. Mas não só. Há as jovens Willa Ferguson (Infiniti) - a filha - e Perfidia (Teyana Taylor) a mãe, ambas negras, lindas, potentes. Esqueçam os ideais, assinem o livro das falhas que confere a grande força do roteiro, uma dessacralização deliberada. O profano surge como terreno, como macabro. Estão ali as mazelas da geração anterior, as promessas não cumpridas, as revoluções por fazer, ante uma América de tendências fascizantes cada vez mais declaradas. Está ali a face neonazista da sociedade se esgueirando por debaixo dos panos. Não há meios, apenas fins, assim como a distopia dos governos e seus asseclas, dos eleitos para governar, que se sentam em seus sofás, discordam e brigam e não se importam.  Em meio ao caos e o impacto desta distopia, o fio amoroso sobrevive. Um pai, ainda que só, ama, cuida e vive para sua filha. O filme deixa aberta essa estrada. Ela existe. Ufa!

 

Para conferir: Uma batalha atrás da outra

Diretor: Paul Thomas Anderson

    

Gisela Haddad é cinéfila e psicanalista.   


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