O Último Azul

Malena Calixto, integrante do grupo de trabalho do Departamento "Sobre o Envelhecimento", nos transporta com suas palavras ao clima do último evento do Envelhecine e à discussão do belo filme "O Último Azul" de Gabriel Mascaro que trata dos destinos possíveis no final da vida.

 

O ÚLTIMO AZUL

Malena Calixto*  

Sábado de manhã numa ruazinha sem saída da cidade de São Paulo, em seu último quarteirão, uma descida acaba em uma enorme construção pública. Quantos signos se apresentam diante de nós anunciando começo e fim, vida e morte, Eros e Tânatos?  

Um friozinho com uma esparsa garoa cobre a metrópole.  

Chego em um pequeno e aconchegante cinema de rua e nos encontramos, todas e todos nós. Lugar antigo, como a garoa, no ar sinais de tempos atrás. O cheiro nos conta uma memória de encontros fascínios, choros, emoções, sustos. Tudo aquilo que a sétima arte traz. Na sala de entrada um cafezinho simples com um bolo de laranja incrível. No balcão pipoca com alguns grãos coloridos. A infância também estava ali. Na manhã sem sol conversas em vários grupos acontecem, pessoas se conhecem. Giro timidamente no espaço para buscar pertença, e a encontro, em nosso grupo de trabalho acolhedor. Sentimo-nos aconchegadas naquele lugar de vó e vô. Entramos, o espaço é pequeno para assistirmos a um belíssimo, grande e distópico filme de Gustavo Mascaro. Ele conta que o ponto de partida para a escrita desse filme foi sua avó de 80 anos que, com a morte do marido, começa a pintar. Isso mesmo! Começa a pintar. E por que não?  O mundo acha que velho não pode. Não pode escolher, não pode querer, não pode desejar, não pode começar.

Que mundo é esse?

Assistimos ao filme “O último azul”, que poderia ser o último suspiro, o último dia, mas o último não é o fim; ele contém azul, águas profundas, céu claro, aquilo que não tem limite, que é movimento e sensação que nada prende. Aqui o último como finitude gera tensão, urgência, revelação. Uma passagem, uma transição para outro estado. Uma porta para o desconhecido. Uma outra vida.  

Pego papel e caneta para escrever o que falam o que as palestrantes falam. No meio do caminho a tinta acaba e, curiosa , me vejo na finitude da caneta. E agora? O que faço? Algo falha aqui na minha escrita, ela não sai, não risca o papel, não marca. Ao lado, uma mulher aos 75 anos me empresta sua caneta preta que dá conta do papel, mas ela me avisa: “Essa caneta também está no fim”. Gosto de pensar o fim como vida. Não só em folhas sulfite, mas também em encontros em cinemas de rua.  

Para contar do filme, usarei, misturados às minhas palavras e às minhas mãos, os pensamentos de Maria Silva Borghese e Delia Catullo Goldfarb, que foram as debatedoras, eu diria, arrebatadoras com seus olhares sobre o filme “O último azul”. O que escrevo aqui também é delas que nos acompanharam e acompanham no grupo do envelhecimento com seus livros, “O Tempo e os Medos: A Parábola das Estátuas Pensantes” (Bolguese) e “Demências” (Goldfarb). Não só delas, de Joana e Luciana, mediadoras do debate, mas também, e não menos importante, da pessoa que me emprestou sua tinta. Não há vida sem marca. Sem aquele sorriso encantador da mulher ao meu lado. Cabelos brancos, nos olhos lápis preto marcando um olhar profundo e negro. Quanta história tem ali? Me pergunto. Está escuro, o silêncio marca a profundidade daquele encontro.

Trabalhar com pessoas mais velhas, não gosto de usar a palavra idosos, trabalhar com pessoas mais velhas é marcado por pele, olhos, sorrisos, linhas nos brancos de uma folha e nas faces, braços e pernas de um certo alguém. Naquele encontro de trabalho tem mãe que morre de doença grave, tem pai que cai e se quebra num movimento em busca de um auto governo. Avós que nos vincos de sua pele nos mostram os rios atravessados no tempo. Tem algo de familiar e de futuro.  

No filme pessoas a partir de 75 anos devem abandonar suas casas, seus vínculos e serem “cuidadas” pelo estado. Tereza , nossa protagonista, se recusa, não precisa desse cuidado, quer preservar sua autonomia. Quer viver do jeito que bem entende, mas é condenada pelo discurso social que é extremamente preconceituoso e falso. As homenagens que ela recebe para sair do seu lar e passar o resto de sua vida em uma colônia mais parece uma coroa de flores.  

Peste, a velhice é uma peste na nossa cultura. A colônia de idosos no filme é uma metáfora da velhice. Sendo ela um imperativo você tem que ir, não tem escolha. Sabemos que iremos chegar lá, todos e todas nós, sabemos. Mas não se trata de saber e não nos preparamos para isso.  

Como se preparar para interferir nesse imperativo da velhice?

As políticas públicas são um meio fundamental para esse preparo. Porém, o Estado não dá respostas para as necessidades de cuidados, moradia, lazer e cultura para essa população. Com muita sorte você terá netos para fazer o papel do Estado. No Brasil, e no mundo, existe uma geração crescente de pessoas mais velhas que moram sozinhas, sem políticas públicas para atendê-las. Quem tem dinheiro paga pelo cuidado, quem não tem - sucumbe.  

A colônia traz uma fantasia de amparo; você entra na colônia e vai sendo destituído, apagado, esquecido. É comum vermos o trabalho de desmentir os mais velhos, de calar e colocar no lugar nossa prepotência. Será  a demência a única saída para esta morte social?  

A colônia está dentro de nós, nos aponta Délia. Uma infantilização a ponto de não poder comprar uma passagem, nem que seja uma passagem desta para uma outra melhor. Tereza não consegue ir. Precisa burlar o que vem definido dentro da nossa cultura. Tereza é pura resistência.  

Protagonista do filme, aos 77 anos decide que quer voar pela primeira vez, pela primeira vez. Voar aqui também é uma metáfora. A arte, como diria Freud, sempre chega primeiro. Tereza não quer se submeter e não se submete. Pega o fio do desejo e traça seu caminho que se faz nas águas dos rios amazônicos. Uma odisseia contra a realidade do corpo. A vida dela vem recheada de uma condenação, uma realidade externa extremamente violenta. Ela nega isso, nega o instituído e faz o seu caminho, sua travessia. Não voa literalmente, mas voa com a possibilidade de fazer laços. A violência sofrida dentro e fora não a intimida. Ela vai, assim como a avó de Mascaro. Assim como muitas avós, avôs e aves desse mundo.

Que mundo é este?

Tereza encontra um barqueiro, se pensarmos no barqueiro da mitologia grega, aquele que conduz as almas para o mundo dos mortos, o Caronte, não estaremos fazendo jus a busca de Tereza. Ela busca um barqueiro para levá-la ao seu destino que vai se fazendo nas árvores, nos fogos amarelos no céu, nas pontes estreitas, subidas e descidas em que ela dirige seu passo e seu olhar altivo e pra frente.  

Nesta travessia um caramujo, um caramujo, aquele que anda devagar, devagar, divagar. Um caramujo que solta um líquido azul que traz uma visão antes desconhecida, um portal. Tereza experimenta, sua companheira de viagem também. Uma mulher que fala espanhol e é mayor, que segue o seu caminho e compra a sua liberdade. Sim, ela não é obrigada a ir para a colônia; tem um certificado pago para a sua liberdade. Tereza não precisa fugir da filha que quer prendê-la na colônia.  

Sua busca acaba sendo individual, resistente que era Tereza. Que bom seria se a saída fosse coletiva e todos se beneficiassem desta rebeldia, desta subversão.  

Nós, enquanto grupo de trabalho, pegaremos carona neste barco de Tereza e navegaremos nas águas revoltas desse caminho. O fim é o mar. E o mar não tem fim. Pelo menos aos nossos olhos. Que não são como a da mulher sentada ao meu lado, mas que dirigem os sonhos pro azul, o último azul.

Assim como Tereza, não me parece uma travessia tranquila. Mas a vida, a pulsão que nos move, é sim, barulhenta, revolta com pássaros cantantes guiando nossos pensamentos.  

O Envelhecine é só parte do trajeto, do deslocamento, da passagem. Nos daremos de cara com a rua sem saída, porém abriremos novas frestas e rachos para seguirmos. Do concreto ao fluido do rio. Dos rios aparentes aos encanados. Que resistem em aparecer cada vez que chove demais.

O filme acaba, Delia e Maria Silvia, depois de suas palavras, se despedem.  

Mas, um segundo antes de acabar a discussão, uma mulher levanta as mãos trêmulas e faz uma pergunta que trago para casa e para o texto aqui partilhado – Tereza é saudável, e os velhos que não são, são doentes? Como podemos pensar nisso? – uma pergunta para o nosso próximo filme e pensamento.  

Um novo braço do rio se faz. Trêmulo. Firme. Caudaloso. Em riste.  

Navegar, navegar, navegar.  

 

*Malena Calixto é psicanalista e aspirante a membra do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Participa do grupo de trabalho “Sobre o Envelhecimento”. Pesquisa e publica artigos sobre luto, trauma, envelhecimento. Autora de “QRiA” - editora Livre da Balada Literária.


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