Quando a fantasia vira realidade: efeitos psíquicos do incesto

Antônio Rivaldo Brasil de Lima faz uma reflexão em torno do tema do abuso sexual na infância. Quais as consequências psíquicas do abuso sexual e do incesto? Que tipo de articulação pode ocorrer entre a situação de abuso e as fantasias edípicas? Como o período do desenvolvimento psíquico infantil ou a resposta do entorno frente ao acontecimento interferem nos efeitos produzidos?

 

QUANDO A FANTASIA VIRA REALIDADE: EFEITOS PSÍQUICOS DO INCESTO

Antonio Rivaldo Brasil de Lima 

A vida é difícil e para ninguém mais difícil do que para a criança normal e sadia de três a cinco anos. (Winnicott, 1954/2022, p. 172) 

Desde quando comecei a estudar psicanálise e a entrar em contato mais profundamente com a teoria freudiana, principalmente no que diz respeito ao complexo de édipo, fico me perguntando sobre as possíveis consequências psíquicas para a vítima nos casos de violência sexual infantil intrafamiliar. Os estudos mostram que esses casos não são raros. De acordo com os dados mais recentes (FBSP, 2024), 35,8% dos crimes de violência sexual são contra crianças de até 9 anos de idade e 85% são praticados por familiares da vítima, como pais, avôs, tios, padrastos. Embora os números já sejam alarmantes, a estimativa é de que apenas 8,5% dos casos são contabilizados devido à subnotificação.

É frequente, na psicanálise, a compreensão de que a sexualidade em si já é traumática, pelo fato de que ela envolverá conflitos e repressão de desejos eróticos direcionados a um dos cuidadores e de sentimentos hostis direcionados ao outro - configuração básica do complexo de édipo. Mas como fica essa dinâmica quando a fantasia relacionada a esses desejos acaba virando realidade, ou seja, quando o adulto realmente faz um jogo sexual com a criança?

No começo de suas formulações a respeito do funcionamento da mente, Freud defendia a hipótese de que teria acontecido concretamente o envolvimento sexual do adulto com a criança e que isso justificava os sintomas neuróticos dessa criança nos anos posteriores de sua vida. Porém, ele abandona essa teoria de sedução ao notar que o desfecho neurótico era resultado da repressão de fantasias sexuais das crianças em relação aos seus pais e que o envolvimento sexual do adulto com a criança não havia, de fato, acontecido. (FREUD, 1897/1986, p. 265).

A partir disso ele desenvolve toda a sua teoria centralizada no complexo de édipo, pautada tão somente em desejos da criança com o adulto e não em atos concretos, cogitando ser essa uma vivência universal (FREUD, 1897/1986, p. 269). Nessa linha, “é, portanto, a fantasia sexual infantil, atividade psíquica ligada à sexualidade infantil, que rege então os processos psíquicos e não o evento da sedução de uma criança por um adulto [...]” (CROMBERG, 2012, p. 214).

Dependendo de como foi esse processo de repressão edípica, mesmo nos casos de não abuso, podem surgir sintomas mais, ou menos, graves de neurose. Essa repressão ocorre devido a ambivalência afetiva que a criança sente em relação aos seus cuidadores e que, com o desenvolvimento do Supereu, marcado pela censura, produz sentimento de culpa. Quanto maior o conflito e o sentimento de culpa, mais complexos tendem a ser esses sintomas.

Neste sentido, segundo Freud (1921/2011, p. 29), o que contará para o indivíduo serão os pensamentos e afetos envolvidos e não necessariamente o ato concreto de transgressão: “Descobrimos que o que vale para os neuróticos não é a realidade objetiva comum, mas a realidade psíquica”. Ou seja, a culpa poderá estar presente mesmo não tendo ocorrido nenhum ato, mas apenas pensamentos.

Portanto, é admissível considerar o sentimento de culpa como um fator central que emerge de toda essa complexidade de ambivalências envolvendo a sexualidade. Esse sentimento se mostrará disfarçadamente nos sintomas neuróticos (obsessões, fobias, histeria), que se apresentam assim para evitar que o sujeito entre em contato diretamente com o que os ocasionou, pelo seu intenso mal estar relacionado ao proibido.

Apesar do que Freud afirmou na citação acima, de que o que conta para os neuróticos é a realidade intrapsíquica e não a realidade objetiva, convém pensar que o conflito e o sentimento de culpa tendem a se tornarem ainda mais densos quando há, de fato, uma violência sexual infantil, que é definida como todo ato ou jogo sexual, entre adulto e criança ou adolescente1, visando estimular sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre si próprio ou terceiro (AZEVEDO e GUERRA, 1988).

Esse sentimento de culpa mais intenso é um possível efeito psíquico nas crianças abusadas sexualmente - e talvez seja o principal. Embora nunca tenha responsabilidade sobre o abuso, ela é uma participante da interação abusiva. Ela nunca é culpada, mas geralmente sente-se assim porque confunde a sua participação com a responsabilidade do que aconteceu. “O sentimento de culpa da criança origina-se de seu senso equivocado de responsabilidade, que ela deriva do fato de ter sido uma participante no abuso” (FURNISS, 2002, p. 17).

Essa culpa ocorre principalmente por a criança estar numa situação que é atrelada às suas pulsões e fantasias, como se, por conta disso, ela tivesse provocado a situação. “É como se a própria pulsão fosse expropriada e usada pelo adulto para sua satisfação. A partir daí, surge inevitavelmente a culpa pelo sentimento de participação subjetiva” (TOPOROSI, 2022, p. 42).

Embora se fale de fantasias e desejos sexuais da criança pelo adulto, esse é apenas o modo que nós, adultos, conseguimos nomear, a partir de uma linguagem já marcada pela cultura, por processos repressivos e por uma sexualidade teoricamente amadurecida. Mas, conforme ideia defendida por Ferenczi, a linguagem da criança é a da ternura, traduzida pelo adulto como sexual.

As seduções incestuosas produzem-se habitualmente assim: um adulto e uma criança amam-se; a criança tem fantasias lúdicas, como desempenhar um papel maternal em relação ao adulto. O jogo pode assumir uma forma erótica mas conserva-se, porém, sempre no nível da ternura. Não é o que se passa com os adultos se tiverem tendências psicopatológicas, sobretudo se seu equilíbrio ou seu autodomínio foram perturbados por qualquer infortúnio, pelo uso de estupefacientes ou de substâncias tóxicas. Confundem-se as brincadeiras infantis com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidade sexual, e deixam-se arrastar para a prática de atos sexuais sem pensar nas consequências (FERENCZI, 1932/1992, pp. 101-102 - itálicos meus).

O autor assinala que nesse processo a criança pode se identificar com o agressor e introjetar seu sentimento de culpa, gerando-lhe uma enorme confusão e divisão entre inocente e culpada, além de se tornar completamente submissa à dinâmica abusiva do adulto.

Dito isso, é importante destacar que até aqui estamos pensando em uma possibilidade de abuso ocorrido na fase do complexo de édipo (etapa central da teoria freudiana) ou posteriormente a ela. Essa fase, como já mencionado, é marcada pela ambivalência afetiva e o alcance da capacidade de sentir culpa a partir da introjeção da autoridade dos pais e das leis sociais. Mas vale ponderar que os efeitos podem ser diferentes se a criança ainda não tiver chegado a essa etapa do desenvolvimento, que para ser alcançada implica um grau de amadurecimento. Ou seja, quanto mais nova ou menos amadurecida a criança, mais graves podem ser os danos de um abuso.

Para fundamentar esse pensamento recorro à teoria do amadurecimento emocional de Donald Winnicott, na qual ele defende que para a criança atingir a capacidade de relações triangulares, típicas do complexo de édipo, muita coisa já precisou ter acontecido em termos de amadurecimento emocional, que só é possível mediante um ambiente facilitador. O autor argumenta que para ter condições de viver a situação edípica, a criança já adquiriu o status de

unidade, experimentando, assim, relações com pessoas totais (WINNICOTT, 1954/2022). Em outros termos, próprios também de sua teoria, a criança já chegou ao estágio do Eu sou.

Se a falha ambiental, ocorrida por meio de abusos sexuais ou outras intrusões significativas, acontece antes dessa aquisição do Eu sou, a probabilidade é de que os sintomas sejam predominantemente psicóticos, e não neuróticos. Pois, segundo Winnicott, a neurose só é possível para quem alcançou maturidade suficiente para viver relações totais (a três ou mais pessoas). Se as invasões ambientais foram antes disso, o resultado será caracterizado pelo que Winnicott chamou de agonias impensáveis, sentimento de aniquilamento e interrupção da continuidade de ser, sintomas clássicos de quem ainda não teve um eu constituído.

Neste sentido, Alvarez (2020, p. 241-242) nos leva a pensar que a necessidade da criança no tratamento psicoterapêutico pode ser diferente a depender do nível de integração de sua personalidade quando ocorre o abuso.

Enquanto o paciente mais moderadamente traumatizado - cujo distúrbio afeta sua personalidade no nível neurótico - pode precisar lembrar o trauma para poder esquecê-lo, a criança mais danificada - cujo trauma é mais severo e mais crônico - pode precisar esquecer o trauma para poder ser capaz de lembrar.

Outro aspecto importante de se avaliar é a qualidade do manejo ambiental após a revelação da violência. Quando um abuso sexual intrafamiliar de uma criança vem à tona, as pessoas próximas a ela podem reagir de forma a amenizar os danos ou a intensificá-los. Os prejuízos podem ser atenuados quando se tomam atitudes de proteção da criança e validação do que ela explicita. Já quando as reações são de culpabilização, desconfiança, recriminação, desvalidação e silenciamento da criança, isso leva à potencialização dos agravos.

Para concluir, pode-se considerar que a criança sempre vai sentir a interação do adulto que cuida dela como traumática, por ser uma inscrição da sexualidade na erogeneização de seu corpo, feita de modo não consciente por quem cuida dela. Isso é inevitável e faz parte do desenvolvimento da psique (LAPLANCHE, 1987/1992).

Quando essa interação é de fato abusiva, na intencionalidade de usar a criança para se obter prazer sexual, há uma intrusão nesse processo natural, um excesso que a criança não pode dar conta. A consequência é que esse trauma tende a ser significativamente maior, variando nos modos como ocorreram esse abuso, no qual, talvez, o ápice seja quando envolve conjunção carnal.

Os efeitos psíquicos do incesto dependem de algumas variáveis. As principais são: a etapa do amadurecimento da criança quando aconteceu o abuso, o modo como o ambiente administrou a revelação da situação abusiva e o vínculo da criança com o agressor. Considerando, sobretudo, a partir da fase do complexo de édipo, é plausível cogitar que a principal consequência seja um intenso sentimento de culpa, que pode se mostrar pelos mais diversificados tipos de adoecimento psíquico.

 No código penal brasileiro, a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos de idade, seja com ou sem consentimento, é categorizado como crime de estupro de vulnerável. 

Rivaldo Lima é psicólogo, psicanalista winnicottiano pelo IBPW, aluno do 3º ano de Psicanálise do Sedes, coordena a área de atendimento do Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV) do Instituto Sedes Sapientiae. 


REFERÊNCIAS

Alvarez, A. (2020). Companhia viva: psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, desamparadas e que sofreram abuso. São Paulo: Blucher.

Azevedo, M. A., Guerra, V. N. A. (1988). Pele de asno não é só história... um estudo sobre a vitimização sexual de crianças e adolescentes em família. São Paulo: Rocca.

Cromberg, R. U. (2012). Cena incestuosa: abuso e violência sexual. São Paulo: Casa do psicólogo.

Ferenczi, S. (1932). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: Obras completas Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP (2024). Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (2021-2023) – 2ª edição

Freud, S. (1897). Carta a Wilhelm Fliess. In: MASSA, Helena (Org.). Cartas a Wilhelm Fliess: 1887-1904. Tradução de Durval Marcondes. Rio de Janeiro: Imago, 1986. p. 264-267.

Freud, S. (1897). Carta a Wilhelm Fliess. In: MASSA, Helena (Org.). Cartas a Wilhelm Fliess: 1887-1904. Tradução de Durval Marcondes. Rio de Janeiro: Imago, 1986. p. 268-271.

Freud, S. (1921). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (trad. Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das letras, 2011.

Furniss, T. (2002). Abuso Sexual da Criança: Uma Abordagem Multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed.

Laplanche, J. (1987). Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Toporosi, S. (2022). Em carne viva: abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Blucher.

Winnicott, D. W. (1954). Necessidades das crianças de menos de cinco anos. In D. W. Winnicott, A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: LTC, 2022.

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