Almodovarianas

Uma fã de Almodóvar, nossa colega Gisela Haddad, se surpreende com a linguagem poética de seu mais recente filme, O Quarto ao Lado, e nos presenteia com o belo relato sobre como essa obra de arte e de tributo à vida a impactou.

 

ALMODOVARIANAS

Fui ver O quarto ao lado de Almodóvar. Cinéfila de carteirinha, evitei fazer leituras sobre o filme. Sou sua fã desde sempre, encantada por sua ousadia em abordar temas até então proibitivos, inaugurando um estilo estridente, entre hilário e profundo, para dar voz aos invisíveis marginais. Inspirado em um mix de cultura pop, vanguarda e anarquia, fez desfilar personagens outsiders como michês, travestis, transexuais, cafetões, putas. Foi em Almodóvar que assisti a sexualidade ser verticalizada, explorada e exposta. Mas aos 76 anos, ele surpreende com uma linguagem poética que, aos poucos, nos arrebata. Um filme sobre a vida, sobre a importância das amizades, sobre quem decide cuidar de seu viver e escolher o seu morrer. Com tons e cores certas, e recursos cênicos que criam uma atmosfera acolhedora, ali estão temas que dialogam com o universo feminino, seus laços maternos ou de amizade, em uma atmosfera de delicadeza e cuidado que nos envolve e nos encanta. Mas não só. Há espaço para os amigos (e espectadores) se acomodarem ao cuidadoso plano de morte assistida de sua protagonista. Escolhida para acompanhar seus últimos dias, Ingrid (Juliana Moore) percebe-se subitamente envolvida em uma agonia interminável, que a faz questionar seus medos, ao mesmo tempo em que admira a coragem, a lucidez e a delicadeza com que Martha (Tilda Swinton) tece seus últimos dias. São belos e muitos os diálogos entre elas. Também vale um “vivas” para o personagem de Damian (John Turturro), amigo íntimo de ambas, que pode dar um suporte à angústia de Ingrid, e protagonizar a voz de muitos de nós, ao denunciar um mundo que vem alertando não só sobre a morte de nosso planeta, mas sobre a indiferença diante de suas crises climáticas. Uma indiferença que habita também a expansão de uma extrema direita pelo mundo, anunciando um cuide-se quem puder.

O filme ainda encontra espaço para antecipar o “mal-entendido” sobre a razão da morte de Martha, que se concretiza com o violento interrogatório policial, que insiste em criminalizar Ingrid e questiona nossas crenças religiosas sobre o suicídio.

Ao contrário, o filme é um tributo à vida e às pequenas coisas que a tornam significativa, mesmo quando encaramos nossa morte de perto e escolhemos como deixar a vida. O lindo cenário da casa, a luz do sol, a neve, o silêncio bem-vindo nos ajudam neste sentido. Arte com A maiúsculo. 

Obrigada Almodóvar, de sua fã Gisela

Gisela Haddad é cinéfila e membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae


Comentários

  1. Lindo tributo à vida o filme e a sua sensibilidade. A amizade é mesmo um ato de hospitalidade às dores e às ternuras da vida

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