Ainda estamos aqui

Maria Silvia Borghese faz um tocante relato da experiência de assistir o filme Ainda estou aqui. As memórias traumáticas causadas pela violência da ditadura afloram e mostram que há muito a ser curado, que ainda estamos aqui vivos, machucados e com os agentes obscuros do fascismo e do terror ainda circulando nos esgotos da ‘rataria’. 

 

AINDA ESTAMOS AQUI

Maria Silvia Borghese 

Dois dias depois de assistir ao filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, caí de cama. Pela terceira vez, estava com COVID. Como assim? Esse vírus nunca irá embora?  Impregnada e mergulhada visceralmente na história de Eunice e Rubens desde que saí do cinema, não resisti a fazer uma brincadeira sem graça com o nome do filme (na verdade, título do livro de Marcelo Rubens Paiva), ao me flagrar ‘positivada para coronavírus’. Fotografei o resultado que aparecia no respectivo visor do teste e mandei aos meus filhos, com a legenda: ainda estou aqui. 

Porém, não havia graça na brincadeira e meu riso amarelo não daria conta de apagar a apreensão imediatamente despertada diante do risco à sobrevivência. Os anos de pandemia, os milhares de mortos, tudo isso segue vivo naqueles tipos específicos de traços da memória, os que ficam encarnados em nosso corpo traumatizado.

Aliás, minha experiência no cinema naquele feriado havia sido exatamente desse tipo: a revivescência do trauma, pois muitos elementos do filme, quase a totalidade, mexeram com essa memória encarnada, com dores escondidas ou refugiadas no corpo. Imediatamente, lembrei do cinema lotado em que estava, dos ruídos de tosse insistente que vinham de algumas fileiras à frente, mas essas lembranças só ganhavam alguma relevância agora, sentindo-me febril e com dores pelo corpo e de cabeça. Lembrei ainda do quanto tinha chorado desde o início da projeção, de quantas lágrimas havia enxugado, dos guardanapos que vieram junto com a garrafinha de água, improvisados como lencinhos. Na verdade, saí muito contaminada daquela sala de cinema, quase febril. Quantas lembranças, quanta história, muitas dores que imaginava cicatrizadas.

Quem está aí? Esta era invariavelmente a pergunta que minha mãe me fazia quando eu chegava para visitá-la, já nos últimos estágios de sua doença. Acometida, como Eunice, do Mal de Alzheimer, minha mãe parecia querer se certificar de quem eu era, quando sua cabeça já a confundia miseravelmente. Se uma das cuidadoras insistia em lhe perguntar quem eu era, sua resposta vinha certeira: ela é minha mãe, minha mãe coruja. Sempre me emocionava essa resposta porque, do jeito dela, assim com as bolas trocadas, ela me contava que sabia quem eu era, imitava uma frase que eu dizia a vida toda quando a apresentava a alguma pessoa desconhecida. E eu me tranquilizava. Nem todas as agruras da vida e da doença que minha mãe vinha atravessando tinham apagado quem ela era, quem somos nós. Minha mãe ainda estava lá.

Do fim para o começo, ver Eunice, interpretada maravilhosamente por Fernanda Montenegro, dar sinais de sua existência enquanto via na TV a foto do amor de sua vida, demonstrando sua persistência em existir apesar de tudo, tocou fundo, lá onde a imensa tristeza se funde com a beleza do espírito, com a ousadia e atrevimento de Eros.

Assistir a Ainda estou aqui é praticamente obrigatório a todas e todos nós, brasileiras e brasileiros, mas como é difícil. Meu filho, que nasceu dois anos após o término da ditadura no Brasil, resumiu em uma frase: ‘que paulada, mãe!’. Saímos para jantar após o cinema e no percurso havia apenas silêncio e lágrimas discretas. Foi dolorido, triste mesmo. Contudo, é fundamental essa retomada para percebermos a dupla violência sofrida pela sociedade brasileira em sua frágil democracia. Primeiro, foram 21 anos de cerceamento de liberdades individuais, desaparecimento, mortes, exílios. Depois, silenciamentos, máscaras e fingimentos, como se fosse possível ‘zerar o cronômetro’, apagar o tempo. Esse impedimento da elaboração de tanta violência sofrida nos condenou a sermos uma sociedade melancólica e violenta na mesma medida, que tenta se esconder atrás de seus rituais festivos... ma non troppo. 

Descendo as escadas da sala de projeção, repetia em voz baixa: ainda somos nós, ainda estamos aqui. Não conseguiram nos matar. Somos testemunhas. A lembrança da resistência, da sobrevivência da memória das pessoas que a ditadura civil-militar brasileira buscou extirpar, fazer desaparecer, é de uma força quase inexplicável. O filme vai se desenvolvendo no entorno daquela família tão brasileira, tão típica daqueles anos. Prole numerosa, pai e mãe reais fazendo seu possível, vida acontecendo. Tudo me era profundamente familiar. Eunice e Rubens eram da geração dos meus pais. A casa cheia e caótica, a cozinha e cachorros encontrados pela rua. Comecei a sentir até os cheiros daquele lugar. 

Por que deixamos isso acontecer? Sabíamos muito bem o que vinha acontecendo no Brasil. No início dos anos 1970, respirávamos medo, as ruas eram sombrias, as incertezas eram o único jeito de se viver. Sabíamos pouco, mas sabíamos que algo estava errado, muito errado. Seguimos em frente, como sempre precisa acontecer, mas estamos ainda machucados, precisamos de cura. Os agentes obscuros do fascismo e do terror, como temos lido em um relatório de 800 páginas, seguem nos esgotos da ‘rataria’. Ainda estou aqui, com sua lindeza tão dolorida, presta um serviço à sociedade, à comunidade, à nação que conta, aquela das pessoas, brasileiras e brasileiros, que vivem, criam filhos e ainda acreditam na rapaziada. 

Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro e professora do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e colunista do Blog do Departamento.

P.S.: agradeço imensamente a Fernanda Montenegro, Fernanda Torres e Selton Mello pela coragem, pela honestidade, por fazerem seu ofício com tanta dignidade. Eunice e Rubens estão vivos e eternizados por essas interpretações, cujas palavras não conseguem descrever. Obrigada!

Comentários

  1. Tocante relato, Maria Sílvia. Sai do cinema em silêncio, junto com Gisela. Silêncio pela dor do que foi vivido e do que ainda persiste entre nós. Silêncio pelo respeito e gratidão por esse filme acontecer neste momento de tantos riscos e negacionismos. Silêncio porque há que insistir nas resistências para que o pior não retorne.

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  2. Como esse filme é importante, sobretudo para demonstrar que o horror que a família Paiva e tantas outras viveram naquela época é ainda como uma ferida aberta! Não cicatrizou! Ainda dói muito e tem que doer até que esse câncer, repleto de metástases que não param de surgir, possa ser extirpado e possamos viver em Democracia plena! Que os culpados sejam punidos, pois ainda estamos aqui! Parabéns Silvia, por sua leitura emocionante!

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