Psicanálise e Racismo no Brasil – Duas Histórias

Dia 20 de novembro foi feriado da Consciência Negra e, por isso, Ana Carolina Vásárhelyi de Paula Santos, psicanalista, membro do Departamento e integrante da equipe deste Blog, preparou um post para relembrar a história de duas psicanalistas negras importantes – Virginia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza – e nos lembrar daqueles que atualmente trabalham com o tema do negro e do racismo. Importante conferir!


Psicanálise e Racismo no Brasil – Duas Histórias

Ana Carolina Vásárhelyi de Paula Santos

O dia da consciência negra, celebrado dia 20 de novembro, recoloca fortemente a questão de que se faz necessário lembrarmos da história, além do líder Zumbi dos Palmares, de tantos outros negros que contribuíram para a construção da história do Brasil e que por razões não tão obscuras ficam esquecidos.

Nossa intenção aqui é a de relembrar, simplesmente. Recontar uma história, trazer a experiência vivida por alguns desses personagens, como forma de enfrentamento do racismo. Porque o que não pode ter nome, não pode ser dito. O que fica invisível é eventualmente esquecido, como se não tivesse acontecido. É contra esse esquecimento que nosso texto aponta.

Uma curiosidade que nos ocorre: em grego, a palavra usada para designar o conceito de verdade é alétheia, que significa “não-esquecimento” (a=não; lethe=esquecimento). Com isso podemos dizer que aquilo que é esquecido pode equivaler a algo não verdadeiro. Como, por exemplo, quando Rui Barbosa mandou queimar todos os documentos que comprovavam a  escravatura, em ato de comemoração de dois anos de abolição (13 de maio de 1891). Organizou uma grande fogueira no centro do Rio de Janeiro e todo registro desta parte da história do Brasil foi apagado, como se assim tivesse apagado a história.

Mas pior que dor, é dor sem nome. Aquela da qual ninguém fala. E assim carregamos marcas encravadas na pele, como se elas não existissem, ao modo de nosso racismo à brasileira. Aquele que existe, mas é como se não existisse.

Pois bem, para falarmos de racismo, teremos que falar de história. Em nossa pequena seara da psicanálise, percebemos uma repetição dessa operação de denegação. Por isso queremos lembrar aqui de duas grandes mulheres que contribuíram para a construção da psicanalise nacional, e que são pouco conhecidas pela maioria das pessoas.

Virginia Leone Bicudo (1910-2003)

Socióloga, psicanalista.
Filha de pai negro e mãe branca
Virgínia foi a primeira de muitas coisas:
Primeira mulher a fazer análise no Brasil
Primeira psicanalista não-médica
Pioneira na introdução da psicanálise no Brasil
Uma das primeiras professoras negras. Lecionou na USP, na Santa Casa e na Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Foi membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e fundadora da Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Virgínia foi muito bem sucedida em sua área. Marcar uma supervisão com ela poderia demorar até quatro anos. Além de psicanalista competente, contribuiu para a divulgação da psicanálise para o público leigo através de um programa no rádio e de uma coluna semanal no jornal.

Mas seu grande mérito foi ser a primeira pessoa a debater o racismo academicamente no Brasil, através de sua dissertação de mestrado, “Estudos de Atitudes de Pretos e Mulatos “ (1945), pela Escola Livre de Sociologia e Política. Primeiro estudo  sobre as relações raciais no Brasil. Foi a primeira pessoa a falar em discriminação racial no Brasil, evidenciando que raça é uma categoria social , não biológica. Denunciou a discriminação e destacou que o silêncio sobre o assunto é um fator impeditivo no desenvolvimento da consciência sobre o racismo.

As questões da discriminação eram comumente atribuídas às classes sociais. Naquela época, mais ainda que hoje, não se falava em preconceito racial. O preconceito era considerado uma questão decorrente das diferenças de classe. Ora, o Brasil era reconhecidamente um país não racista, um paraíso racial. A constatação do preconceito de cor, apontado por Virgínia, foi de grande ousadia na época.


Neusa Santos Souza ( 1958-2008 )

Médica e Psicanalista lacaniana.
Baiana. Negra.
Autora da obra que mais marcou a militância do movimento negro no Brasil, o livro “Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social” (1983).

No livro, a autora mostra como tornar-se negro pode ser doloroso. Aponta para as questões do corpo e para os efeitos do preconceito no corpo negro que acaba se tornando sintoma dessa doença invisível, o racismo. A rejeição vivida e introjetada resulta na baixa auto estima em relação aos próprios traços identitários raciais. Pergunta se seria possível mesmo valorizar o nariz, o cabelo e o tipo de corpo submetido ao imposto ideal branco.

O livro é prefaciado por Jurandir Freire Costa, que escreve:

“Este livro procura romper a precariedade de estudos sobre a vida emocional dos negros. Diante da flácida omissão com que a teoria psicanalítica tem tratado esse assunto, a autora apresenta reflexões profundas e inquietantes sobre o custo emocional da sujeição, da negação da própria cultura e do próprio corpo. O negro que se empenha na conquista de ascensão social paga o preço do massacre de sua identidade, tomando o branco como modelo de identificação.”

Ou seja, o negro deve sofrer até processo de branqueamento. Neusa entrevista diversas pessoas que relatam já terem ouvido de seus pais ou avós o conselho de se casarem com um branco para “melhorar a raça”. Por exemplo tantas mulheres que alisam seus cabelos ou que de outras maneiras se ocupam em apagar seus traços originários. Vemos que a aparência se torna um adversário, e se cria uma relação persecutória com o corpo.

Sem apresentar nenhum precedente de depressão, ou qualquer indício de perturbação de qualquer ordem, num sábado, dia 20 de dezembro de 2008, com cerca de 60 anos, Neusa desistiu de viver e se jogou do alto de um edifício em Laranjeiras no Rio de Janeiro. Deixou num bilhete o pedido de desculpas para as pessoas próximas. Não era casada, não tinha filhos. “Neusa, a suicidada da sociedade”  nos ocorre uma paráfrase do título do livro que Artaud dedicou a Van Gogh¹.

No dia 13 de maio de 2018 comemoraremos 130 anos de abolição. Esperamos contribuir para que a reflexão, o diálogo, o respeito e principalmente a escuta transforme de forma concreta a história de tantos anos de humilhações, injustiças e violência contra o povo negro.

Autores que contribuíram  e os que ainda atuam para o enfrentamento do racismo:

Frantz Fanon ( 1925- 1961)
Lélia Gonzalez ( 1935- 1994)
Isildinha Baptista Nogueira
Maria Lucia da Silva
Jose Thiago Reis Filho
Eliane Costa


Para ler mais:
SOUZA, Neusa dos Santos. Tornar-se negro: As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
COSTA, Haroldo. Fala, crioulo: o que é ser negro no Brasil: Record, 2009
FANON, Frantz. Pele negra e Máscaras Brancas: EDUFBA, 2008
ABRÃO, Jorge Luiz Ferreira. Virginia Bicudo, a trajetória de uma psicanalista : Arte e Ciência, 2010
KON, Noemi Moritz (org.). O racismo e o Negro no Brasil: Questões para a Psicanálise: Perspectiva, 2017

Ana Carolina Vásárhelyi de Paula Santos: filósofa, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae e da Clínica Pública de Psicanálise Canteiro Aberto Vila Itororó

Notas:
- ¹Nome do livro de Artaud: Van Gogh, o Suicidado da Sociedade
- Imagem capa do livro: google

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