Sobre o evento "O Departamento vai ao Cinema: Era o Hotel Cambridge", realizado em 21/10/17, confira hoje o texto de nossa colunista Maria Laurinda Ribeiro de Souza.

Era o Hotel Cambridge – um convite à Ocupação das ruas

Assisti a Era o Hotel Cambridge durante o evento promovido pelo Departamento de Psicanálise, no Espaço Itaú de Cinema, em 21.10.2017. Depois do filme, uma roda de conversa com mediação de Pedro Mascarenhas e Heidi Tabacof.  Além do público, a presença de Eliane Caffé (diretora do longa), Carla Caffé (diretora de arte), Carmen Silva (coordenadora do Movimento Sem Teto do Centro e figura marcante no filme), Julian Fuks (escritor e residente artístico da Ocupação), Soraia Bento (Coletivo escutando a cidade).
Pedro iniciou a conversa perguntando ao público sobre as impressões e ressonâncias provocadas pelo filme. Surgiram respostas, perguntas, comentários, silêncios. As falas apontaram para  a intensidade das cenas, para a diversidade de culturas coabitando o mesmo espaço, para o sentido dessas ocupações, a impossibilidade de fronteiras entre a realidade e a ficção, o lugar da poesia, da literatura... Julian contou um pouco de sua entrada nesse “hotel”, sua implicação com o vivido durante o tempo de convivência e a necessidade de um afastamento para poder escrever. Eliana e Alessandra Sapoznik (Coletivo escutando a cidade) marcaram, ao contrário, a impossibilidade de se afastarem. Um apelo veio em forma de convite à hospitalidade: é preciso que outros se impliquem, se solidarizem com os Movimentos Sociais e possam participar com seus conhecimentos e aptidões.  Fátima Vicente respondeu oferecendo o atendimento para crianças da Ocupação. O próprio evento já era uma resposta solidária do Departamento ao se abrir para outros espaços e convocar-nos para conhecer mais de perto a realidade dessa luta.
Para além da evidência imediata desse apelo – o atendimento à necessidades prementes –,  é sobre outro aspecto que quero demarcá-lo. Ele se liga à fala de Carmen Silva quando conta um pouco de sua história: a chegada à São Paulo, a expectativa de encontrar um lugar onde a vida lhe fosse mais favorável. Sua desilusão e desamparo. Uma narrativa onde se vislumbram as necessidades não atendidas e a solidão numa cidade inóspita e pouco receptiva. Mas há uma virada significativa em sua vida quando ela descobre e passa a fazer parte dos Movimentos que reivindicam moradia. Sua participação no filme, liderando as assembleias e as formas de ocupação, convocando para a conversa com a juíza e criando estratégias de resistência, organizando a “festa” da próxima ocupação, para que o despejo anunciado não os deixe sem teto novamente: “corra, corra, entre em sua casa, a casa é sua”, é a imagem de uma potência reconquistada. Aqui o que me impressiona, mais uma vez, é o valor do coletivo, do comum. E é a isso que o apelo anunciado nos convoca: a que retomemos os coletivos, o trânsito pelos espaços da cidade, a quebra dos isolamentos paranóides, a participação nas causas que reivindicam o bem comum, os direitos humanos fundamentais – saúde, educação, moradia, trabalho, liberdade de expressão.
Assisti ao filme uma segunda vez. De  novo me inquieto com as primeiras imagens: os prédios vazios, abandonados, pichados. Agora, elas estão contaminadas pela lembrança do final do longa – que havia provocado em mim o silêncio traumático – a reação violenta do Batalhão de Choque da Polícia Militar e a semelhança com cenas da rua vividas na época da ditadura civil-militar –, é como se o vazio dessas imagens me remetesse, novamente, ao risco de transitar pela cidade. Mas a narrativa sobre o sentido da Ocupação e as histórias que vão sendo construídas naquele coletivo tão diversificado modificam meu olhar e meus afetos.  Ao final do filme, um outro impacto: presto atenção na passagem dos créditos e me surpreendo: quanta gente participou desta produção! Ele próprio é um coletivo!  E, de fato, é assim que ele foi apresentado logo no início: um filme construído a partir de coletivos: os estudantes de arquitetura da Escola da Cidade, a Frente pela Luta por Moradia, o grupo de refugiados. Eliane afirmou que os não-atores co-escreveram o roteiro e que sem eles o filme não poderia ser feito.
Esses que fazem dos prédios vazios sua casa não o fazem porque são “invasores” ou “vagabundos que não querem trabalhar”. As ocupações não são invasões! São formas de luta, são resistências, potências de vida que não se deixam matar pela perversidade de um sistema que prega o empreendedorismo, que elimina direitos sociais, que propõe reformas trabalhistas e previdenciárias indignas e injustas.
É para essa realidade, escancarada nas ocupações, nos 14 milhões sem trabalho, no “genocídio” de crianças e adolescentes (em sua maioria pobres, pretos e da periferia) que é preciso insistir no olhar.  Quando este se volta para a censura nas exposições artísticas, para a proibição do reconhecimento das diversidades de gênero, para a conquista possível de mais propinas a fim de manter a impunidade pelos crimes cometidos e aprovar medidas que aumentam o desamparo da maior parte da população brasileira, é porque já passamos da hora de OCUPAR as ruas. O silêncio e a não-ação mortificam a alma.

Maria Laurinda Ribeiro de Souza é psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon