Acompanhamento Terapêutico no Envelhecimento: uma clínica política

Nesta semana, o blog publica dois textos sobre o trabalho de Acompanhamento Terapêutico. Confira agora a experiência da psicanalista Camila Morais, com o texto "Acompanhamento Terapêutico no Envelhecimento: Uma Clínica política".


Acompanhamento Terapêutico no Envelhecimento: uma clínica política
                                                                                                                    Camila Morais

O Acompanhamento terapêutico (AT), pratica clínica de origem latino-americana, surgiu no campo da saúde mental a partir da necessidade de produção de novos dispositivos de tratamento visando o enlaçamento da loucura ao contexto social. Esta é uma modalidade de atendimento clínico que ocorre fora do setting tradicional (consultório), tendo a rua, a casa do acompanhado e outros tantos espaços públicos e privados que fazem parte do cotidiano, como erritórios para suas intervenções.
No Brasil, depois do golpe militar de 1964, vivemos sob a ditadura por cerca de 20 anos. Este acontecimento rompeu com um processo de abertura que vinha ocorrendo no campo da saúde mental, quando as comunidades terapêuticas surgiram no país. O fechamento destes espaços fez com que restasse aos profissionais da área, uma única alternativa em momentos de intensificação do sofrimento dos pacientes em crise: a internação nos hospitais psiquiátricos.
No final da década de 70, ocorreu uma forte mobilização dos profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes com transtornos mentais, culminando no movimento da luta antimanicomial, marcado pela defesa dos direitos humanos e do resgate da cidadania. Ligado a esta mobilização, surgiu o movimento de Reforma Psiquiátrica que denunciava os manicômios como instituições de violência e propunha novas formas de tratamento em uma rede de serviços de base territorial e comunitáriaO AT surgiu neste contexto colocando a loucura na cidade e subvertendo a lógica asilar do isolamento.
Com cerca de 40 anos de existência, esta prática ampliou seu alcance para outros campos além da saúde mental, entre eles, o campo do envelhecimento. Loucura e velhice tem percursos que se articulam historicamente pela via da exclusão, da marginalização e do silenciamento. Segregação que toma forma, em muitos períodos, por meio da institucionalização em um modelo asilar. Durante os últimos dois séculos, o envelhecimento foi um tema marginal no campo das questões sociais e da saúde mental. O advento da modernidade, consolidado com a revolução industrial e o desenvolvimento do capitalismo, tem como paradigma o valor calcado na produção e geração de riqueza. O velho como aquele que não tem mais capacidade produtiva acaba marginalizado, torna-se objeto da caridade social e sua imagem fica atrelada à ideia de doença, pobreza e ócio.
Estamos passando por um período de transição alavancada pela questão demográfica que encara o envelhecimento como uma preocupação social. A velhice ganha visibilidade, ainda que como um problema a ser resolvido. Surgem outras imagens para a velhice; ideais tais como o da velhice ativa que produzem outras exclusões, mas abrem a possibilidade de um lugar em contraposição ao não lugar anterior.
Em nosso país, as lutas de diversos movimentos sociais obtiveram importantes conquistas, como o sancionamento de políticas públicas direcionadas aos idosos que proporcionam a criação de diferentes dispositivos institucionais, não somente asilares, entre outros direitos fundamentais. O idoso segue resgatando o lugar de cidadão, de ator social em um campo onde ainda estão presentes muitas lógicas de exclusão produzidas historicamente no bojo de um conjunto de valores culturais que atravessam o campo subjetivo de forma singular.
O Acompanhamento Terapêutico no envelhecimento passou a constituir um modo de atuação com contornos mais claros a partir da associação de interessados neste campo e na clínica do envelhecimento em meados de 2006. Desde então, o Núcleo de AT no Envelhecimento da Ger-Ações: Pesquisas e Ações em Gerontologia vem se dedicando a pensar as particularidades da prática do acompanhante terapêutico (at) neste campo, contribuindo com produção teórica, eventos científicos, encontros de transmissão de saberes, espaço de trocas clínicas, entre outros. Neste texto falo em nome deste grupo e do trabalho coletivo que temos construído ao longo destes anos.
Em nossa cultura, a violência da exclusão se apresenta de diversas maneiras no cotidiano: nas relações de cuidado, quando o idoso se submete ao outro temendo o abandono; quando um equipamento de saúde trata o que seria um direito como se fosse um privilégio e discrimina; quando na mesa de jantar da família o idoso não encontra interlocutores, entre tantas outras situações. O acompanhante terapêutico testemunha essas variadas formas de violência da exclusão contra o idoso, as quais, muitas vezes, se manifestam de forma silenciosa.
No campo do AT no envelhecimento, a ética que norteia a nossa clínica está intimamente entrelaçada com a ética da Psicanálise. Nos dispomos a escutar o sujeito na radicalidade da experiência de estar junto, a qual literalmente se dá no lado a lado, possibilitando ao acompanhado a apropriação de si e de sua história. Assim como a Psicanálise, o Acompanhamento Terapêutico surge como uma prática subversiva no campo da saúde mental. Tanto no contexto da loucura, quanto no do envelhecimento, o AT se mostra como um dispositivo que vai contra o instituído e que busca subverter as lógicas de exclusão produzidas e, por vezes, arraigadas no social, por meio de valores culturais que atravessam o campo subjetivo.
Uma dimensão ética fundamental desta clínica política no campo do envelhecimento, é a busca por abrir espaço de existência plena ao sujeito, através da escuta de sua história de vida, desejos, anseios e necessidades. Esta escuta, aliada a uma potência criativa e flexível, abre espaço para ressignificações e possibilita ao acompanhado novos modos de relação. 
Justamente por estes dois aspectos, o de uma prática subversiva e o de um dispositivo que vai contra o instituído, que podemos considerar que o AT carrega a importante dimensão de uma clínica política. O acompanhante terapêutico é a figura articuladora desta relação, no exercício daquilo que é uma de suas marcas, o posicionar-se no entre, ocupando territórios de fronteiras.
Por fim, gostaria de ressaltar que é fundamental que tenhamos um posicionamento crítico a respeito da velhice e do processo de envelhecimento, a partir de uma compreensão sobre como as situações sociais, políticas e econômicas reverberam na produção da subjetividade. Podemos fazer uma clínica de acordo com os princípios do poder dominante ou uma clínica cujo projeto é a sustentação de novas formas de existência e de subjetivação. Nos dias atuais, com a volta de tantos discursos conservadores, higienistas e excludentes, podemos considerar que a clínica que vai contra o instituído, assim como a clínica do AT, se coloca como uma prática de resistência.

Camila Morais - Psicanalista, Terapeuta Ocupacional e Acompanhante Terapêutica. Mestranda em Psicologia Clínica pelo IPUSP. Coordenadora do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico Cont.AT.o. Membro da Ger-Ações, na qual faz parte do Núcleo de AT e da coordenação do Curso de Psicogerontologia.

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