Experiência do psicanalista Ricardo Gomides, com o texto "O outro em nós. Analisando o cotidiano através do acompanhamento terapêutico".
Dando continuidade aos textos sobre Acompanhamento Terapêutico, confira agora no blog a experiência do psicanalista Ricardo Gomides, com o texto "O outro em nós. Analisando o cotidiano através do acompanhamento terapêutico".
A imersão na cultura gera efeitos surpreendentes. Com o tempo, podemos ser contagiados por gostos alheios, modos de agir estranhos a nossos hábitos e, não raro, até emitimos juízos com os quais não concordaríamos posteriormente. Os afetos investidos em amigos, colegas de trabalho ou familiares trazem a reboque possibilidades de identificações com outros valores, tornando a vida psíquica um trânsito singular de opiniões e posturas que passamos de um a outro como moeda destinada ao reconhecimento mútuo ou pertencimento grupal. Sem grande crítica, às vezes mantemo-nos na rede de trocas repetindo enunciados que se passam por nossos apenas enquanto os encaminhamos ao outro tal como nos chegou.
Quando os afetos tornam-se agudos e surgem polarizações maciças, penso que tal rede adquire uma viscosidade pregnante, fazendo circular posições que, em tempos brandos, jamais teriam lugar. Acredito que vivemos tempos assim, sem grande afastamento crítico e com certa imaturidade para lidar com a diferença divulgada profusamente nas mídias sociais. É possível aderirmos aos humores
extremos levados por laivos identificatórios que marcam nossa permanência grupal por imersão. Se esta permanência é mantida por longo tempo, tal identificação inicialmente fraca pode gerar os efeitos de uma significativa transformação psíquica, tornando a presença do outro um traço de caráter
permanente em nós, tal como sugerido por Freud (1923) em O Eu e o Id.
Ainda que esse trânsito em meio à cultura seja sempre fluido, no mais das vezes não atentamos para os efeitos desta presença sobre nós. O exercício da crítica não é uma prática cotidiana e mesmo no espaço privilegiado da análise, por exemplo, geralmente temos assuntos mais urgentes para tratar do que esta influência. Dores da alma doem demais, urgem demais, redundantes como são.
Penso que um jeito de talvez nos atentarmos para esta presença seja pedir auxílio a um estrangeiro. Alguém de outra localidade, outro tempo, quase alheio ao nosso mundo para que, assim, possamos saber do nós onde não nos sabemos. A semelhança não é gratuita: penso em um analista da cultura, disponível para trabalhar no dia-a-dia. Alguém capaz de escutar o cotidiano com a justa medida de imersão e distância simultâneas.
Como os tempos culturais hoje ressoam a agressividade, incompreensão, intolerância, funcionalidade extrema, preconceito e indiferença, a tarefa é das mais urgentes – tão urgentes quanto tratar daquelas outras dores, aquelas que, por apego à subjetividade, custamos a creditar suas origens também ao mundo que nos cerca.
E onde encontrar um analista assim disponível, para nos escutar e curar em ato, na ordem do dia, bem quando a cultura nos tomar e nos fizer outros, alheios à nossa crítica? Como recorrer a esta escuta quando tal imersão fizer de nós algo pior do que conseguimos sozinhos?
Bem, o melhor que encontrei tem nome e às vezes me atende quando dele vou cuidar: o louco. É fazendo acompanhamento terapêutico (AT), esta clínica realizada no cotidiano, que tenho encontrado um analisador dos melhores. Junto aos meus pacientes, trago-os um pouco para cá, retirando-os muitas vezes da distância abissal que se encontram deste nosso mundo. O cárcere silencioso de uma posição de nulidade familiar tem seus efeitos. A história incontável de um filho que nunca nasceu, porque o pai teria ordenado um aborto, reverbera tolhendo os passos, ainda sob a guarda deste mesmo pai. Escutar estas histórias, encontrando no mundo guarida para elas é tarefa de acompanhantes terapêuticos. Estes agentes clínicos que cuidam dando ouvidos e corpo às falas, posto que é em movimento, pela cidade, que criamos saídas para o claustro objetivo-subjetivo. Neste exemplo, o pai, aquele que mora em casa e no delírio, torna-se menor, menos investido, na medida inversa de quanto maior se fizer o mundo compartilhado por acompanhante, paciente e a cidade ao redor.
Acredito que uma das mais valiosas contrapartidas obtidas no AT é ingressarmos em um mundo sob ligeira suspensão enquanto trabalhamos. Não há como ser de outra forma, pois, se histórias de desterro ganham voz e companhia em meio ao social, desprotegidos de qualquer setting, a realidade mesma se alterará à nossa volta, sob o impacto da voz alquebrada que acolhemos. Os pacientes saem de abismos e coabitam este mundo. Eu, sob tal transferência, também sou retirado um pouco desta nossa terra – terra de trilhos, nos quais corremos ágeis, apressados, exaustos e míopes.
Certa vez, a analista de quem tenho falado aqui, fez uma interpretação simples e marcante, como convém às boas. Ela, psicótica como só, discorria sobre a perseguição familiar e as más intenções de seus pais para com ela e o filho não nascido. Assunto que eu escutava na padaria, enquanto almoçávamos no bairro dos Jardins.
Lembro-me bem e todos sabem do que estou falando. As mesas lotadas, a impaciência no ar, o ambiente repleto de funcionários de escritórios ou lojas, aguardando a chance de usar o tíquete-alimentação antes de voltar ao trabalho. Eu e minha paciente, compartilhando o alheamento da psicose, almoçávamos servidos pelo banquete do delírio. A refeição estava ótima.
Eis que ela resolve cumprimentar o cozinheiro. Algo tão bem feito quanto aquele purê de batatas devia ser reconhecido. Neste ponto começa a inversão. Capturado pela cultura, preso à pressa estampada no rosto das pessoas, ligado ainda à corda do relógio que nos transforma em cucos, não pude compreender a proposta de minha analista. Questionei: “Não, não dá. Aqui o cozinheiro não é o chef, é o cozinheiro mesmo, atrás do fogão, mexendo panelas. Estamos em uma padaria na hora do almoço. Não dá para chamar o cozinheiro”.
Ela, impassível às minhas ligações culturais alienantes, insistiu, dizendo ao garçom o que queria. Achei que nada aconteceria e segui minha refeição, mais atento à sua história do que aos movimentos com os quais ela interpretaria aquele fragmento de cultura.
Passados alguns minutos, chega à mesa o cozinheiro vindo de algum lugar nos fundos. Chega com a típica roupa branca-encardida de trabalho. Retira docilmente a proteção dos cabelos, cruza braços e mãos atrás do corpo, dobrando-se de maneira servil. Assustado, pergunta se o tínhamos chamado e se havia algo errado. Temia uma bronca, certamente.
Calorosa, minha analista toca no braço dele, fazendo-lhe um carinho enquanto dizia: “Não, meu amor, não tem nada errado. Eu só te chamei para te agradecer. Para dizer que a comida está ótima e que você está cuidando muito bem da gente. Muito obrigada pelo carinho que você colocou aqui, tá? Está uma delícia a sua comida”.
O moço ficou sem palavras. Talvez fosse a primeira vez que o tivessem chamado à mesa, especialmente para um elogio tão sincero e direto. Alguém reconheceu no sabor da comida o carinho de um trabalho. Além disso, devolveu-lhe um traço importante de sua ocupação: ele, na cozinha, cuidava de todos nós ali, que havíamos nos deslocado para receber o alimento que ele havia preparado. Com o choque, o moço não conseguia se mover. Apenas depois dela pegar sua mão e dar aqueles dois tapinhas carinhosos e finais é que ele entendeu que podia voltar à cozinha.
Eu, de minha parte, também me dera conta de quão chocante é alguém sair da lógica impermeável da funcionalidade contínua – esta lógica que faz dos espaços de vida extensões de trabalho e consumo que devem funcionar sem interrupções. A organização dos espaços e das relações é marcada pelo distanciamento operacional: eu entro, consumo, pago, vou embora. Sem perceber, minha fala servia à manutenção deste papel operacional. Do outro lado, quem trabalha estaria ali para servir de modo eficiente. O salão deve girar o mais rápido possível. É assim que se dança em um restaurante no horário de expediente. O carinho, o reconhecimento, o vínculo emocional entre pessoas, por mais fortuito que seja o encontro, não deveria ocorrer.
Fiquei envergonhado com a presença da cultura a me suspender pelos ombros, deixando-me seco como a uma camisa estirada no cabide de uma lavanderia, movendo-me impessoalmente nesta ordem fluida e maquinal, como se estivéssemos todos embalados em plástico.
Eu, um acompanhante terapêutico já experiente, que sei da lógica manicomial que constrói muros em todos os lugares, segregando e silenciando a diferença; eu, crítico a esse respeito, me vi dissolvido no ambiente, tomado pelo vínculo com uma ordem que ultrapassa meu corpo, habita-me inadvertidamente, fazendo-me estranho a mim.
Agradeci à minha analista por desconsiderar os apelos que fiz em nome da ordem funcional. Agradeci por ela me lembrar a importância de deter o curso veloz do tempo para lançar ao outro a mão larga e quente de um reconhecimento. Vi no espanto daquele moço o inusitado de um acontecimento. Imagino o sorriso em seu rosto em qualquer hora do dia, lembrando-se do afago agradecido de uma pessoa. Fantasio os efeitos que um gesto assim pode ter deixado em seus sonhos.
Suspeito que algo desta natureza esteja em falta no curso dos dias atuais, quando nos tornamos impassíveis diante do outro, emitindo juízos que atropelam a cordialidade e nos fazem esquecer a comunidade de que todos fazemos parte.
Urge um analista que nos faça lembrar de duas presenças possíveis em nós: a silenciosa e imperativa ordem funcional que nos torna violentos e indiferentes aos demais; a possibilidade sempre aberta de atentarmos para isso, dando corpo à gentileza de que somos capazes, tornando o trato com o outro matéria de reconhecimento mútuo. Quem sabe assim, possamos dar à vida espaços mais afáveis de convivência.
Ricardo Gomides é psicólogo, psicanalista, acompanhante terapêutico. Doutor em Psicologia e membro-aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
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