Da escuta ao território: algumas reflexões sobre o projeto Escuta 60+

 Desde o início da quarentena surgiram serviços de plantão psicológico online para cuidar dos sofrimentos decorrentes do isolamento e do medo frente a pandemia. Confira a seguir o texto de Cristiana Kehdi Gerab sobre o escuta 60+.


DA ESCUTA AO TERRITÓRIO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O PROJETO ESCUTA 60+

Cristiana Kehdi Gerab 

Cida, 66 anos, desesperou-se com pensamentos que passaram a “martelar” em sua cabeça a partir do momento em que, por conta da pandemia, viu-se confinada e isolada em seu apartamento. Mulher ativa, financeiramente independente, afirma ser dona do próprio nariz. Os pensamentos, no entanto, remontam a uma relação complicada com o filho mais velho. É apenas no rapaz que fala ininterruptamente, acentuando o quanto lutou por ele, por sua saúde, seu bem-estar, o quanto tentou “salvá-lo” de situações que poderiam tê-lo arruinado. Cida., inconformada, sem acesso ao rapaz, sente-se abandonada e não reconhecida por todo esforço que fez pelo garoto, referindo-se a ele como um grande ingrato. Ela parece não querer reconhecer que o filho, agora recém-casado, pode se cuidar sozinho.

Amanda, uma jovem, liga ao serviço para encaminhar sua mãe, que percebe estar extremamente ansiosa diante da situação de quarentena. Joana também liga para encaminhar a sogra, isolada e apresentando sinais de reincidência da antiga depressão, já tratada noutros tempos. Suzana, por sua vez, se diz desesperada por notar que o marido da irmã não toma os devidos cuidados de higiene ao sair de casa, relatando que a irmã é parte do grupo de risco não apenas por ser mais velha, como recém operada da ponte de safena.  Ela quer trazer a irmã para sua casa, para poder cuidá-la da maneira que crê ser a melhor, mas o conflito entre as duas aciona nela uma angústia insuportável.

Regina liga para conversar, queixa-se do marido que, totalmente envolvido com o computador e a televisão, não a escuta. Conta que cuidou dos filhos e da casa a vida toda, hoje participa de um clube da terceira idade onde fazia (antes da quarentena) projetos de tricô e artesanato com um grupo de amigas. Sente-se triste e desmotivada. Lurdes, ofegante na ligação, diz que está caminhando na rua por não aguentar mais ser maltratada por um irmão de quem cuidou a vida toda, ambos vivendo em seu apartamento. Estar em situação de confinamento com ele expõe e explicita toda a injustiça diante da qual sente se encontrar.

Severina fala da dureza que foi sua vida de migrante pernambucana em São Paulo, sempre focada no trabalho e sustento dos filhos. Ficou viúva muito cedo e reclama que nenhum dos filhos hoje a ajuda em sua velhice. Teve de reformar a casa com o dinheiro da aposentadoria, e a reforma foi se tornando cada vez mais complicada, conta que o pedreiro a roubou e que nada ia saindo como planejado. Quando chega a pandemia, Severina começa a ter crises de pânico e corre o risco de infectar-se indo à UBS mais próxima, ao hospital do coração, ao mercado onde costuma fazer compras. Pergunta-se: como me virar se não tenho ninguém para me ajudar? A agente de saúde do PSF a visita semanalmente, mas quando se contagia com covid-19 deixa de ir por um mês. Severina conta com alguns vizinhos e com a possibilidade de a agente de saúde voltar logo.

Todas essas vozes foram escutadas durante os meses de abril, maio e junho, quando o pico da pandemia do covid-19 ia atingindo o Brasil. Estas mulheres telefonaram ao Escuta 60+, projeto de que participo, pensado para oferecer escuta e acolhimento gratuitos a pessoas dessa faixa-etária durante o período instituído de quarentena. O projeto, na linha dos diversos outros serviços de psicologia online, funciona através de plantões de acolhimento e visa oferecer um lugar para que alguma fala pudesse ser formulada e expressada.

Foram muitas as pessoas que telefonaram, homens, mulheres, filhas e noras (em sua maioria) procurando ajuda à geração mais velha de suas famílias. Pudemos perceber, no entanto, que queixas relacionadas ao lugar de cuidado que as mulheres dessa geração ocupam se tornaram muito prevalentes. E chama a atenção, a mim, especialmente, o tema da desigualdade de gêneros, que aparece com tanta clareza nos discursos dessas mulheres. Uma das questões que me intriga: como, em um momento de uma crise como essa, sem precedentes na história do mundo pós-moderno, temas com relação ao cuidado com os filhos, familiares e seu respectivo reconhecimento por parte destes repetem-se com tanta veemência nas falas dessas mulheres. Porque é isto, no final das contas, que vem à tona?

Com relação aos homens que nos telefonaram, percebemos também haver certo padrão de queixa, assim como um padrão mais específico de uso do serviço: enquanto as mulheres, que em termos de número, ligaram muito mais (foram 62 mulheres diante de 18 homens - durante esses três meses exatos), os homens faziam ligações com muito mais recorrência, alguns deles telefonando várias vezes por semana. As principais queixas revelavam o temor de perder o trabalho, pavor de não ter dinheiro, vergonha de pedir ajuda, angústias no corpo - sensação de estar morrendo ou poder morrer a qualquer momento.  Geraldo liga praticamente toda semana ao projeto, a morte sempre permeando seu discurso - um querer morrer misturado ao medo de contagiar-se. Diz que ouviu na televisão que os velhos serão descartados das UTIs em prol dos mais jovens. A guerra é biológica? É nazismo brasileiro? - pergunta. Sua vida voltará a ser o que era? 

O desamparo nos homens fez-se muito explícito, e muitos ligavam pedindo orientações, encaminhamentos e usando o serviço de escuta a cada vez que se sentiam em desespero. A impossibilidade de projetar um futuro parece aterrorizante a muitos dos que telefonaram. Ser escutado por alguém parece fazer uma marca, mas que é frágil, e é necessário que muitos liguem de novo, dando a nós um claro entendimento de que necessitam saber que são cuidados. Em termos de vínculo, os homens os estreitaram mais que as mulheres, que, em sua maioria, ligaram apenas uma vez - mesmo dizendo, diversas vezes, que voltariam a ligar. Em uma só conversa, muitas delas se acalmavam e organizavam-se, redescobrindo os próprios recursos para atravessar a situação de isolamento. 

Pensemos que a pandemia é uma situação de crise, e, como toda a situação de crise, põe o sujeito em contato direto com a castração (Freud) -  a vulnerabilidade própria a cada um, que figura na incerteza com relação ao futuro, no enigma da morte que ronda, no contágio que pode vir de qualquer lugar - inclusive daquele que é amado e querido. No medo de perder entes queridos, filhos e netos que foram motivo de alegria por mulheres que se identificaram a vida toda com o papel de cuidar deles. Diz Freud: 

De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade.(...) É evidente que a guerra está fadada a varrer esse tratamento convencional da morte. Esta não mais será negada; somos forçados a acreditar nela. As pessoas realmente morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, freqüentemente dezenas de milhares, num único dia. E a morte não é mais um acontecimento fortuito.(...) Já tive ocasião de dizer que em minha opinião o aturdimento e a paralisia de capacidade de que sofremos são essencialmente determinados, entre outras coisas, pela circunstância de que somos incapazes de manter nossa atitude anterior em relação à morte, não tendo encontrado, ainda, uma nova. 

A necessidade de se isolar nos coloca em uma circunstância similar a um estado de guerra, em torno do qual discorria Freud nesse texto. Como nos colocarmos frente a nós mesmos quando estamos diante de grandes abalos em nossas vidas? Frente a nossa própria mortalidade? Quais ancoragens detemos que nos liguem à vida, para que o risco da morte não seja da ordem do horror? 

Uso o termo ancoragem com base no que diz Broide a respeito dos fios que ligam o sujeito à vida, geralmente invisíveis para nós, e que vão se explicitando conforme escutamos. Muitas das ancoragens se explicitam quando os sujeitos falam de família, mas não só a ela se referem.                                              

Esse entendimento fez com que mudássemos nossa maneira de escutar. Agora vamos atrás dos fios que ligam o sujeito à vida, dos laços determinantes de sua vida. É nestes que certamente estão o desejo e a possibilidade de sobrevivência. Aqui é fundamental entender que as ancoragens não são necessariamente a família. Na verdade, podem às vezes ser a família, mas geralmente são outras pessoas, ou até́ mesmo animais(...)O surgimento das ancoragens na escuta clínica faz com que estas sejam nosso mapa, nosso radar de trabalho com o sujeito, e no andar no território.  (Broide, p.19)                             

Parte das estratégias de cuidado do projeto, nesse sentido, foram as de tecer redes de cuidado, ligar para os serviços disponíveis no território ou a outros dispositivos clínicos que oferecessem atendimentos a custo social.

Entendo que o distanciamento social, nesse sentido, facilita e dificulta. Explico. 

Por um lado, jamais teríamos acesso a pessoas de tantos lugares se não dispuséssemos de um serviço que, além de gratuito, pressupõe apenas a existência de um telefone do lado de quem liga e do lado de quem escuta. O acesso à ajuda torna-se, portanto, fácil e democrático. Nós estamos em todos os territórios, uma vez que nosso alcance se faz praticamente ilimitado.

Por outro lado, temos o impeditivo de não estarmos presentes nesse território, e, portanto, limitados (aí sim) a esperar que os serviços atendam nossas ligações, nossos e-mails - serviços que muitas vezes não têm sequer uma estrutura preparada para isso.

Entrar nas casas das pessoas através do telefone é ter acesso às relações delas com suas casas, quintais, vizinhos e vizinhança - e atentar a escuta e apontamentos dos terapeutas para essas relações foi fundamental no trabalho de cuidado com elas.

Em uma das ligações, muito bonita e emblemática, Dalva se dizia desesperada e assustada, e conforme ia falando com a terapeuta, pôde ir rememorando seus tempos de costureira. A partir de sua fala, ancora-se a este significante tão valoroso em sua vida, e busca a máquina de costura guardada durante a conversa.

Em outra ligação, Arnaldo dizia que estava muito decepcionado com seu CAPS de referência, que o tinha abandonado à receitas de medicação que a ele pareciam desvinculadas do sentido de sua tristeza. Não encontrara mais o psiquiatra que o atendera, e nosso trabalho acabou sendo focado em informar a esse CAPS o que havíamos escutado, na tentativa de reatar a transferência desse homem com seu território.

Para além dos efeitos individuais da oferta de escuta e acolhimento, completamente necessários nesse momento, a escuta oferecida pelo projeto pôde introduzir uma diferença no território: pudemos articular redes de cuidado entre as pessoas e os serviços disponíveis no território. 

O impacto do distanciamento social é, portanto, mais ou menos drástico conforme as ancoragens que cada um encontra em seu próprio território – e enfatizo aqui o território no sentido subjetivo, enquanto lugar de apropriação simbólica, construído de afetos, memórias e relações.  Uma escuta qualificada e atenta leva a um mínimo discernimento necessário, o que, em última instância, pode contribuir para a organização e gestão dos cuidados em saúde mental de um ou vários bairros. 

Cristiana Kehdi Gerab é psicóloga, psicanalista e acompanhante terapêutica. É mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, trabalhou no HD e na equipe de ATs do Instituto A Casa. Integra a equipe Tempo - clínica e cuidado no envelhecimento e o projeto Escuta 60+.

Broide, J. A clínica psicanalítica na cidade. In:  Colóquio Psicanálise nos espaços públicos. Orgs: Emília Broide e Ilana Katz. São Paulo, IPUSP, 2019.

Freud, S. Vol.14. Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: Edição Standard brasileira das psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago.

Comentários

  1. Cristiana, que importante trabalho o de oferecer escuta para o público 60+ nesse momento tão difícil e crítico da pandemia! Parabéns pelo belo texto!!
    Beijos, Luciana

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon