Socorro!

 O Blog do Departamento de Psicanálise publica hoje a crônica pesadelo da psicóloga e psicanalista Mariângela Rodrigues Di Bella.

 Socorro!

Socooorro!!!! Alguém pode me acordar desse pesadelo?

Não, não estou falando só do Corona. Falo, também, do Carona: aquele cara (de pau) que pegou carona no insucesso alheio, na esperança traída, na revolta justa frente à ganância inescrupulosa, no ódio consentido, na intolerância incontida, nas fakes, na faca, no oportunismo barato e tantas outras tábuas que foram passando e servindo de palanque para uns e salvação para outros.

Parece mesmo um pesadelo, daqueles que você tenta acordar, mas não consegue. Cenários e cenas se deslocam e se condensam, tentando, sem muito sucesso, contornar a angústia que se apresenta o tempo todo.

Os conteúdos se manifestam, aparentemente desorganizados e incompreensíveis, provocando uma sensação inquietante de desamparo no agora e no por vir.

Corona, Covide, 120.000 mortos por causa de uma "gripezinha”, famílias desenlutadas choram corpos não velados, enterrados anonimamente. Frases ecoam: " E daí? Não posso fazer nada!”, "Lamento. Todo mundo um dia vai morrer!", “A economia precisa girar!”. Saio correndo procurando o Ministro da Saúde... “Cadê?”, “Foi embora!”, “E o substituto?”, “Também já foi...”, “E o atual?”, “Está no quartel, contando a cloroquina...”, “Mas, mas não é ...?”, indago desesperada, enquanto vultos me afastam e escondem cruzes, papéis, revistas científicas, apagam números enormes no computador. No lugar, colocam bilhões de notas de 100 reais, saindo de uma caixa enorme, azul e branca. Pessoas se amontoam, se acotovelam, se estranham, cada uma tentando pegar o que julga ser seu por direito. Algumas conseguem, outras não. “Não tenho a senha!”, “Não tenho celular!”, “Não sei o que é CPF!”, gritam. Em uma ampla e confortável sala, homens bem vestidos observam a cena sorrindo, contentes e irônicos, desfrutando do sucesso da ação. Um deles, que parece ser o chefe, diz para os demais: “O povo me ama! Não posso viver sem isso!” Em seguida, junta-se a uma pequena aglomeração, todos sem máscaras. Tira fotos, faz poses, aplaude e é aplaudido, sempre acompanhado por aqueles mesmos que estavam na sala da cena anterior. Alguns, inclusive, de uniforme.

De repente, um carrinho de golfe... (ou será um mini tanque de guerra?), com uma criança loira, fantasiada de soldado do Exército, salvando uma moça loira, também com roupa camuflada do Exército... Cartazes enormes tomam a cena: "Fechamento do Congresso Nacional e do STF já!!!", “Intervenção Militar!”, “Militares no poder!!!”. Um grupo, coletivo autodenominado "300 pelo Brasil", acampado na Esplanada dos Ministérios, é retirado e, logo em seguida, fogos de artifício são lançados contra o STF, anunciando que é um aviso aos “Vagabundos!”. Nenhuma intervenção policial!!!

Cartas voam pelo céu, vindas de vários lugares. Uma carta enorme toma a cena principal. É assinada pelo mesmo homem das cenas anteriores e por outros homens fardados. Ele lê a carta em tom intimidatório, como já o fizera em cenas anteriores.

Homens de toga se inquietam e, apesar da data venia, respondem com alguma coragem à carta, tentando colocar aqueles homens em seus lugares. Mas nada os faz ceder.

Vários grupos, levando várias bandeiras, tomam as ruas e se manifestam, em diversos locais, por diferentes causas. Os confrontos são inevitáveis. Ódio nos olhos. Uma cena real vista há alguns dias na tv invade a cena onírica:  um PM negro, apontando um fuzil para a cabeça de um manifestante negro, fazendo-o recuar até uma parede. Fico perplexa também na cena onírica. Nela, os olhos dos dois vão se avolumando, tornando-se a própria figura humana, e só o que se pode ver são o ódio e o medo.

Uma cavalaria invade uma das manifestações. À frente, conduzindo uma arma imaginária através de um gesto com as mãos que a simboliza, está o mesmo homem da carta. É impossível não reconhecer o sorrisinho sarcástico nos olhos e no canto da boca. A imagem se aproxima. Aquele ser estranho, montado em um cavalo branco, tem um manto igual ao de Luís XIV, o Rei Sol, onde se podem ver as letras douradas formando a frase: “O estado sou eu!”. Na cabeça, um chapéu com o mesmo formato daquele que se pode ver na tela de Jacques-Louis-Davi, Napoleão Cruzando os Alpes. Mas o rosto!!!! Que rosto é esse?!?!?! Assustada e surpresa, desvendo aos poucos os traços ali presentes: bochechas de Hugo Chaves, e, apesar da cor, os olhos são iguais aos de Nicolas Maduro, bem como o é o nariz. Mas... os óculos... estes são idênticos àqueles usados para tentar corrigir a incorrigível miopia de Jânio Quadros. Que bizarrice, penso.

Acordo assustada. Ufa!!! Ainda bem... era só um pesadelo. De repente, uma tristeza enorme me invade. Meu pesadelo era puro resto diurno, enriquecido pela beleza e eficácia dos mecanismos próprios que regem os sonhos, me dou conta... Na verdade, nem parece que dormi.

Chega! Deixo isso tudo para lá, faço uma pipoca e vou revisitar um adorável filme de Charles Chaplin, O Grande Ditador.

São Paulo, 31 de agosto de 2020.

Mariângela Rodrigues Di Bella é psicóloga e psicanalista. É membro do grupo de escrita Candelabro.

Comentários

  1. Gosto do veloz entrecortado das imagens! Documento de história... Breves reflexões psi amigas do fluxo onírico.. Texto ouvindo texto: corona/carona; cara (de pau); fakes/facas... Desafogo de ideias pontiagudas.

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