Os sonhos pandêmicos e o silêncio do tirano

Rodrigo Alencar trata da violência dos silenciamentos e da resistência do sonhar. Enquanto um sufoca, o outro trabalha.

 

OS SONHOS PANDÊMICOS E O SILÊNCIO DO TIRANO

        

Aqui vai um sonho que você não terá dificuldade de decifrar.

Um gavião do cerrado, também conhecido como Carcará, sobrevoava o Palácio do Planalto que estava envolto com uma nuvem verde, densa e parecia fazer mal a quem a respirasse. Com seus olhos de gavião super apurados avistava um homem cuja língua saía para fora da boca e se estendia por todo o entorno, enforcando e emaranhando pessoas que chegavam até ali seduzidas por uma performance grotesca, mas que naquele momento, se viam enforcadas pela língua. A língua espremia as pessoas que seguravam câmeras e as pessoas não sabiam se tentavam se defender ou filmavam, perdendo a capacidade de diferenciar uma coisa de outra.

O Gavião, que sabia que iria atrair a atenção por seu aspecto impressionante, mas não suportava a baixeza de certos espetáculos, desce num voo rasante e bica a língua arrancando-a do seu dono, que perde o equilíbrio e se estatela no chão. As pessoas ficam dúbias em relação ao Gavião, não entendem o que acontece ali, mas ficam marcadas com um aspecto do Gavião que era seu peito estufado e sua aparência monocromática, era preto e branco, quase sem nuance. Tinha uma âncora e um Timão tatuado no peito.

Os clichês e reproduções dos acontecimentos dos últimos meses nos permitem acessar com facilidade a representação.

A manifestação-resposta, impulsionada pela Gaviões da Fiel, foi um alívio no cenário político nacional que não ocorria há anos. Quem esperava que em meio a uma pandemia, a uma tacanhez generalizada das instituições que deveriam defender a democracia, surgiria a Gaviões da Fiel para peitar os desfiles fascistas que davam ares moribundos à Avenida Paulista?

No livro O Oráculo da Noite, escrito por Sidarta Ribeiro, há um olhar respeitoso e apaixonado pelo mundo onírico, contemplando estudos oriundos da psicanálise, de psicólogos comportamentais, neurologistas e até mesmo arqueólogos e historiadores. Dentre as infinitas possibilidades que os sonhos trazem para nossa vida, está a de desvelar perspectivas possíveis para a vida de quem sonha. O livro aborda estratégias de guerra tomadas após serem sonhadas e cita teorias como a de Carl Gustav Jung e sua classificação de sonhos premonitórios.

A ideia com ares místicos possui uma explicação evolucionista: sonhar com cenários futuros seria um mecanismo de defesa da espécie. Amanhã nós seremos atacados? O que fazer diante de uma situação inesperada que me ameace? Sonhos costumam apresentar impasses, constatações resistentes à consciência, memórias abandonadas durante a vigília e, de acordo com a principal lição freudiana; desejo.

O desejo é o motor de todo sonho, mesmo dos pesadelos mais assustadores, dos sonhos mais banais e dos que parecem não comportar sentido algum. A teoria psicanalítica, somada à prática clínica, permite situar a sustentação do desejo no sonho de cada sujeito. A premissa freudiana é simples, sejam oriundos de um breve cochilo, ou de longas narrativas nascidas de uma boa noite de sono, as imagens e associações produzidas por meio de nossa linguagem onírica respondem aos anseios que podem parecer improváveis ou até mesmo reprováveis.

O fim de uma situação difícil pode ser expresso de modo preguiçoso: “vem meteoro”. A violência pode se apresentar satisfatória por meio do assassinato de alguém e, como não poderia ser diferente, o tesão pode percorrer uma transa aleatória sem qualquer casualidade entre o par. O que é interessante do sonho é sua vivência tão particular, o que para uns é um pesadelo, para outros é um sonho agradável. Posso sonhar com corpos despedaçados e não me abalar durante a noite e acordar ofegante de pavor porque no sonho falava com uma pessoa amada que me ignorava.

A pandemia tem produzido sonhos como um vulcão em erupção lançando lava e fumaça sobre o seu entorno. A experiência de estar em uma encruzilhada demanda de todos nós trabalho psíquico intenso. Da minha experiência clínica, posso dizer que desde 2013 os sonhos têm parecido um pouco mais criativos, com elementos militares, fronteiras, invasões com policiais vestidos de “Swat” e tanques. A política e a polícia vêm sendo embaralhadas na vida desperta e onírica. O desejo testemunha a ronda da morte e dá seu depoimento por meio dos sonhos.

Se existem pessoas que insistem que está tudo normal mesmo nas situações mais extravagantes, o Coronavírus chegou para contestar tal tranquilidade até durante o sono. O maior trunfo do inconsciente é sua não exclusão de contrários, de modo que tudo pode caber no teatro onírico. O terraplanista pode sonhar com um planeta redondinho e o cosmopolita progressista pode sonhar com a representação preconceituosa de um asiático ameaçador. O sonho, assim como o desejo, não depende de coerência para existir.

Regimes autoritários reconheceram o risco da liberdade inerente ao sonho e a jornalista Charlotte Beradt teve de cifrar os sonhos relatados por seus entrevistados na Alemanha de trinta. A autora do livro “Sonhos no terceiro Reich” enviou os relatos de sonhos disfarçados de cartas para fora do país, trocando nomes como Hitler e Goebbels por outras expressões tais como “tio Hans” e “Gustav” para não correr o risco de as cartas serem interceptadas e a polícia nazista localizá-la.

Orwell, em 1984, constrói a cena na qual um filho delata o pai que dizia coisas subversivas enquanto dormia. A delação leva o pai à prisão, sob acusação de trair o Grande Irmão. Tais narrativas demonstram que o sonho não é subversivo só para o indivíduo, mas para o seu contexto. Quando a realidade ergue seus tijolos com ajuda do rejunte do terror político, o surrealismo sonhado se infiltra nos cantos mais inesperados. A esse caráter irrefreável e seu potencial de farol social, foi dado o nome de oniropolítica. Nome que intitula a maior pesquisa nacional sobre sonhos que ocorrem na pandemia nesse momento.

No Brasil de 2020, com sua mistura de torpor e horror político, assolado por uma pandemia que nos marcará dentre as nações mais irresponsáveis do mundo, quem poderia sonhar com a Gaviões da Fiel enfrentando o Bolsonarismo em meio à uma letargia de partidos e organizações de classe? Sendo a dúvida imperiosa, só nos resta subvertê-la: com o quê sonharam os Gaviões, para ousarem enfrentar como o fizeram, quando todos seguiam entorpecidos pelo choque das notícias diárias?

É provável que tenhamos menosprezado a capacidade da Gaviões da Fiel de sonhar, como apresentada nos versos de seu samba enredo de 2020:

“Quantos sentimentos me levam

À luta por um ideal

Chama que ninguém pode apagar

É a liberdade de poder sonhar”.

 

Rodrigo Alencar é psicanalista, doutor em psicologia clínica - IP USP, professor da pós-graduação na Fundação Escola de Sociologia e Politica de São Paulo  

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