Culto aos Corpos Disciplinados

Thiago Majolo escreve sobre o ódio moralista representado no discurso do nosso vice-presidente acerca da decisão judicial sobre a liberação dos cultos religiosos presenciais. Confiram!


CULTO AOS CORPOS DISCIPLINADOS

No sábado de 3 de abril deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Kássio Nunes Marques, decretou liberação de cultos religiosos durante a fase mais grave da pandemia, decisão essa que foi revogada dias depois pelo também ministro Gilmar Mendes. O quiprocó continua.

No esteio da discussão, o vice-presidente Hamilton Mourão, numa entrevista coletiva, disse: “As pessoas que frequentam o culto, o templo, são pessoas mais disciplinadas. É diferente de baladas, festas clandestinas que acontecem. Também não vou colocar no mesmo nível, são duas atividades totalmente distintas. Uma é espiritual e a outra é “corporal”, vamos dizer assim.”

Não vou me ater aqui às questões sanitárias, porque seria chover no molhado do bom senso de que nenhum tipo de aglomeração seria responsável nesse momento, de cultos a raves. Mas gostaria de tecer um comentário sobre a fala ideologicamente enviesada do vice-presidente. O que talvez mais me embrulhe o estômago nessa aparentemente inocente entrevista, proferida com bom humor e voz mansa, é o ódio moralista às manifestações do corpo. Podemos ler nas entrelinhas da palavra, dita assim, “corporal”, algo do tipo “leviano”, ou “pecaminoso”, ou ainda, e sempre, “sexual”.

Seria também ridículo ter que lembrar que tem vindo de um dito católico, como se autodeclara o presidente da república, o maior exemplo de indisciplina sanitária que o mundo testemunha. Não entrarei mais a fundo nisto, pois o que me interessa é nos lembrar que o ódio moralista às expressões do corpo, especialmente às manifestações mais explicitamente sexuais, prosseguem em marcha talvez com a mesma intensidade – se não maior – que a que encontrou Freud em sua época já tão distante. Ou seja, coisa menor, mais baixa, menos relevante é ir a uma balada; coisa mais elevada é ir ao culto. Amar a Deus antes de transar com o outro. A predominância do tal espírito sobre o corpóreo (mal) esconde um moralismo vulgar.

Não é difícil imaginar o que o vice-presidente diria de um culto umbandista, por exemplo, em que os corpos menos “disciplinados” servem para manifestações espirituais de cunho místico-religioso, configurando um evento em que a dança, o canto, o toque são mais que necessários para sua realização. “Ah, aí não pode”, diria nosso general de plantão.

Guardo comigo o respeito profundo pelo desejo já nostálgico de quem quer gozar de baladas e/ou cultos. Respeito o desejo, não a ação nesse momento da pandemia. Mas espero, pelas pessoas que atendo, por mim mesmo e pelo bem corporal de todos que, assim que possível, possamos cultuar uma boa balada.

Thiago Majolo é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae 

Comentários

  1. Bolsonaismo vai passar mas o essa mentalidade,cultura por certas denominações religiosa e pela ministra que as representa.... essa mentalidade tende a permanecer por anos ou décadas...

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  2. Análise precisa, Tiago. Parabéns pelo texto

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