Sobre Bozos (1) e Maricas – um esforço de pensamento sobre o laço social

O Blog apresenta nessa semana, o texto da psicanalista, professora e escritora Maria de Fatima Vicente, que trata dos campos de identificação e segregação, cada vez mais fixos e imutáveis, que se servem do outro como alvo pra onde o olho aponta.

SOBRE BOZOS (1) E MARICAS – UM ESFORÇO DE PENSAMENTO SOBRE O LAÇO SOCIAL 

Há algum tempo vi de relance uma foto no Facebook, daquelas que abatem nosso ânimo. Li um ou dois dos comentários e a um que dizia "é o fundo do poço" reagi em concordância, talvez com o emoji que expressa raiva, talvez com o que expressa tristeza. Entretanto, algo me fisgou na ocasião e a insistente lembrança da foto se tornou enigmática. A escrita que segue é um esforço de pensamento que busca ler a partir da insistente interpelação do que vi.

Ocupando quase todo o espaço da foto, pode-se ver um homem e uma mulher que olham bem de frente, entre sorridentes e insolentes, para aqueles que os vierem olhar. Ao fundo, vislumbra-se um espaço aberto e público.  Não são jovens, vestem-se de verde e amarelo, seguram, à frente de seus corpos, uma faixa que lembra a bandeira nacional, mas as figuras geométricas características foram substituídas por um texto, cujo enunciado e estilo simula um "Artigo Primeiro", de uma Constituição, das que são feitas para contribuir a forjar um país sob Estado de Direito. Entretanto, essa escrita pretensamente constitucional afirma que “o povo tem o poder, o exerce diretamente e quer o A.I.5 agora.” (É como me lembro). Se tal “artigo constitucional” expressa uma impossibilidade, além de ser um acinte, pelo menos para mim, penso que não é, com certeza, efeito nem da ignorância nem da idiotice, mas que é sobredeterminada. O que o diz é o olhar que os fotografados nos endereçam e algo mais que ressalta dessa calculada pose feita para postar nas redes sociais. Além daqueles ícones recorrentes - cores, bandeira, camisa com referência à seleção ou à Fifa etc. – esses militantes do A.I.5 estão fantasiados de Bozo. Vestidos com as cores nacionais, segurando a bandeira com a inscrição da Constituição que almejam, vestem também os característicos sapatos daquele palhaço, com os rostos maquiados como o dele e com a inconfundível peruca que lhe é própria. Tudo muito estilizado, tudo feito para ser visto. Um gesto silencioso que se pretende um recado. O que quer (nos) dizer a imagem que parece querer afirmar "Sou Bozo"?

Uma outra lembrança de Facebook me vem em associação à foto. Há meses eu havia visto uma campanha de divulgação de um movimento muito interessante e tocante, o dos "Maricas". Trata-se de um movimento afirmativo de homens homossexuais bolivianos. Provindos de aldeias indígenas, vivendo em condições de trabalho precarizadas, são expulsos ou vivem excluídos em suas comunidades tradicionais de origem devido à homossexualidade. Lá, são chamados de maricas, denominação pela qual são insultados.

Ultrapassando aquelas condenações da tradição, aqueles homens assumem publicamente sua homossexualidade, porém, não se reconhecem sob a denominação globalitária de gays, pois não compartilham todas as pautas daquele movimento; consideram que delas estão também excluídos em suas singularidades étnicas e sociais. Fazem um importante ato emancipatório – rejeitam uma denominação global e, ao mesmo tempo, transformam o insulto local em modo de se reconhecer e de serem reconhecidos em suas especificidades. Dessa forma, se instituem como movimento, transformando o traço aniquilante, maricas, em um nome vivo, que os abarca e os convoca ao encontro e à ação política comum.

Não é a primeira vez na História que um movimento emancipatório nasce também ao transformar insultos que lhes são destinados em condição de reconhecimento mútuo, de afirmação e empoderamento no contexto da sociedade que os quer proscritos. O que estimula o desejo de interrogar qual teria sido o processo dessa transmutação e quais seriam as condições de possibilidade dessa ocorrência, uma vez que a formação de massa que se estabeleceu nesse caso, o dos Maricas, parece ter uma característica efetivamente emancipatória e menos identitária do que poderia se supor.

Como já dito, eles buscam se diferenciar dos gays, mas o fazem por julgarem que outras condições relativas às suas existências também merecem ser consideradas – a nacionalidade boliviana, enquanto sociedade periférica, a proveniência indígena, enquanto referência histórica e mítica, a condição de precarizados, no que concerne ao campo das condições econômico-socias que possibilitam ou impedem a subsistência e o acesso aos bens da cultura. O que talvez permita formular a hipótese que todas essas dimensões compõem uma rede de relações que os identificam, sem que qualquer delas se constitua em uma designação unívoca. Nesse caso, maricas comportaria todas essas significações e outras mais que o prosseguimento histórico venha a constituir.

Gostaria de pensar o caso daqueles Bozos da foto a partir dessa referência. Pois, embora haja uma enorme distância no espectro político entre aqueles “maricas e esses “bozos”, há algo em comum entre eles e que é necessário ressaltar. Ambos tomam para si, em ato de empoderamento político, um nome pelo qual são designados. Uns, para se reconhecer e agir em comum, estes outros, para nos dirigirem aquele olhar e enviar aquela espécie de recado mudo.

Contrapondo-se à lógica dos Maricas bolivianos, cuja nomeação é aberta a significações plurais, estes bozos se dão-a-ver, um modo não falado de se fazerem presentes. Dessa forma, parecem estar em sintonia com a lógica que comanda aqueles gestos, dito simbólicos, que comparecem, com frequência, nas lives do presidente da República. Exemplarmente, o gesto de tomar um copo de leite durante a transmissão de uma fala presidencial, gesto silencioso, que se dá-a-ver e que explora as ambiguidades dessa condição. Pois, o gesto poderia indicar o apoio ao agronegócio e aos produtores de leite (conforme foi justificado posteriormente), embora gesto inesperado para a situação. Seria uma significação passível de ser compartilhada coletivamente e aceita, ou questionada, em suas implicações político-sociais; mas, gesto que é também outra coisa, pois que, ao mesmo tempo daquela possível significação comum, delimita uma comunidade de pertencimento, a dos supremacistas brancos. Gesto que, sem dizer, supõe que “entendedores, entenderão”.

Curiosamente, essa identificação sígnica, já consolidada em outras conjunturas sociais, se estabelece a partir da presença de uma bactéria nos intestinos, bactéria responsável por tornar a lactose digerível, e que é mais frequente em caucasianos. Ainda que de ocorrência fortuita, essa presença passa a ser o fundamento (no caso, biológico) de um pertencimento tido como inamovível. O que, então, se pode ler do que a imagem dos bozos (não) diz? Qual seria seu “fundamento”?

Será que essa atribuição identitária que se dão, por meio da imagem, e que oferecem como um “se mostrar” corresponderia a uma forma de resposta que estariam dando a uma injunção compulsória, como é a de um insulto1, uma atribuição que opera como força (aparentemente) insuperável?  Se admitirmos temporariamente tal hipótese, talvez seja possível avançar na leitura da imagem.

Quando de um insulto e sob uma tal denominação, o sujeito (individual ou coletivo) ao qual o insulto se destina fica sem saída, só lhe restando submeter-se. Mas, é nesse “se” que radica a questão da eficácia do insulto. No caso dos Maricas a insubmissão e reversão da dimensão do insulto foi possível e parece ter se apoiado na riqueza de significações que a complexidade de suas formas de vida e modos de gozo, entrelaçados e admitidos, puderam propiciar. No caso dos Bozos, a prevalência do aspecto de fixidez da imagem por meio da qual somos encarados pelo olhar, parece indicar uma certa modalidade de ultrapassagem daquilo que pode ter sido experimentado como insulto, no caso, insulto ao mito. Trata-se, porém de uma pseudo-ultrapassagem já que se ancora na não-transmutação de uma significação unívoca, a qual parece haver sido assumida e recusada por meio do escárnio. Não há nem ultrapassagem nem submetimento, mas algo que indica a hostilidade para com todos os que sejam outros e que os viram ou os vêm como bozos.

Aqui vale retomar a referência ao supremacismo branco, pois, o fato de se apresentarem como Bozo parece ser um modo de enunciar, por meio dessa imagem afrontosa, uma fantasia de uma inultrapassável condição intrínseca de pertencimento a algo que aqueles que ousaram pensar insultá-los não alcançam. Podem escarnecer do insulto.

Pois, assim como o supremacismo branco com suas bactérias, mesmo sendo chamados de bozo – ou por qualquer outra eventual designação para os seguidores de Bolsonaro – eles permanecem detentores de uma condição tal que é intrínseca, atemporal, a-histórica e não passível de transformação. Que funda o grupo sem possibilidade de adesão ou de abandono e, em relação ao qual, todos os demais são não-equiparáveis. Que condição seria essa se verá mais adiante.

No caso brasileiro e especialmente no âmbito da política recente, estes outros não equiparáveis são os petralhas, os comunistas, os da ideologia de gênero, os universitários, os cientistas, os artistas...a lista é infindável. Entretanto, não há qualquer bactéria a dar fundamento a essa radical separação (como também é irrelevante que haja no caso anterior), assim como não há qualquer referência histórica e/ou de contexto que delimitem aqueles outros de forma a indicar uma oposição a eles que seja racional. A lista é infindável, porque pode ser qualquer um em qualquer lugar ou hora, desde que seja outro. Nessa radical separação reconhecemos as condições específicas da segregação.

A segregação não se apoia em condições passíveis de deslocamento e de ampliação de significações a partir das experiências socialmente compartilhadas2 o que lhe confere a característica de ser aparentemente inamovível ou de difícil transformação. Ela se erige menos em muro que circunscreve o território, como seria o muro da linguagem ao estabelecer os circuitos de ideais que reúne o grupo por meio do líder, e mais em armamento disparado contra o outro. Particularmente naquilo que o outro se especifica enquanto formas de vida diversas, habitadas por gozos tais que, quando confrontados a eles, estes que segregarão, devido ao próprio despreparo simbólico, experimentam esse confronto à diferença de gozos como injúrias3 narcisistas e, portanto, repudiam esses outros que gozam desses modos e vivem daquelas formas diversas e plurais.

Entretanto, se à segregação faltam os ideais que enlaçam o líder e os membros da massa, talvez se possa também afirmar, considerando o caso presente, que a segregação e seus efeitos não dependem nem mesmo do líder – mito ou outro – para ser efetiva em sua destruição da pluralidade dos laços de uma sociedade. Que a ela pode faltar também o líder, pois o que parece fundar aquela massa que segrega parece ser o próprio ato de repúdio ao outro enquanto tal.

Se voltarmos à foto da qual partimos, encontramos que, em contraponto ao olhar e dar-se a ver da imagem, os dísticos da suposta bandeira trazem um elemento novo à consideração. Pois, se daquele texto nos impressiona imediatamente que se exija o A.I.5 como bússola de governo, já que nos remete ao passado que desejamos ter deixado para trás, o suposto artigo constitucional fundante anuncia um futuro ainda não antevisto. Ali se declara que o povo não se deixa representar, que exerce o poder diretamente, ou que o exercerá em breve. Não saberia dizer se isso deveria nos alegrar ou alarmar, pois, esse segmento que se diz “o povo” é um povo que se funda por meio do repúdio ao outro, a qualquer outro.

Acredito que um esforço de pensamento que busque a inteligibilidade das condições de possibilidade de uma massa que é regida pela segregação, independentemente de suas relações com um líder, pode ser útil a esta sociedade, no momento atual. Ou, mais estritamente dentro de nosso campo, poderemos ter mais recursos para acolher e escutar àquelas e aqueles que tenham sofrido ou estejam sofrendo devido às segregações que proliferam no país na atualidade em decorrência das condições sócio-políticas vigentes.

São Paulo, março de 2021

Maria de Fátima Vicente, psicanalista.

Notas:

[1] É provável que essa significação tenha sido assumida a partir do nome Bozo, pelo qual Bolsonaro é referido, depreciativamente, talvez ofensivamente, por seus adversários políticos e opositores da sociedade amplamente considerada.

2 Como nas condições próprias às do narcisismo das pequenas diferenças.

3 Insultos ou injúrias têm a condição de sobrevirem ao sujeito como um ataque, ou seja, podem ser pensados como traumáticos, devido à falta de preparação antecipatória.

Maria de Fátima Vicente é psicóloga e psicanalista, mestre e doutora em Psicologia. É membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae onde também é professora do Curso de Psicanálise. É autora de "Psicanálise e Música - aproximações" (Coleção Clínica Psicanalítica- 2004) 

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