Dia 31 de Março de 2021: Mal de Arquivo, uma Ex-Periência

Nossa colega Tânia Corghi Veríssimo compartilha com o Blog do Departamento de Psicanálise uma experiência inacreditável e nos mostra, ao fazê-lo, a importância dos espaços coletivos para tecer reflexões e construções, para que possamos encontrar brechas, respiros, em tempos nublados.


DIA 31 DE MARÇO DE 2021: MAL DE ARQUIVO, UMA EX-PERIÊNCIA

O que escolhi compartilhar com vocês, colegas do Departamento de Psicanálise, parte de um substrato comum. Encontra-se com um desejo familiar a nós, psicanalistas, que acreditam na potência do trabalho psíquico tecido pelo laço com o Outro, no desejo de transformar grande intensidade corporal em narrativa e efetuar a passagem da angústia encalacrada ao corpo para um campo livre de palavras (que, até então, não sei quais serão).

Mas há a pandemia, os tempos são duros, propõem o anti-movimento, a anti-circulação, o fechamento e isolamento, a quebra de laços vitais e vias de encontro e elaboração, apontando para o desafio de renovarmos caminhos, perscrutarmos brechas em meio ao breu. Tarefas hercúleas para quem avista a insegurança diante da morte e de perdas irreparáveis que agora nos chegam em formato de assalto. Cenário desesperançoso que me convoca a este tal desejo de passagem da angústia sufocante para as palavras, como uma lanterna que ainda ilumina o fundamento da nossa aposta cotidiana. Não vejo motivo para escrever que não este: a aproximação da possibilidade de efetuar uma passagem, a de ter algum encontro.

Ainda no final de 2020, em mais um domingo de isolamento, em casa, cheia de preocupação e saudade de tanta gente querida, as palavras de Alcimar Alves de Souza Lima surgiram como boas companhias, visitas que deixaram sua marca com força suficiente para agora voltar: “angústia é tensão que não ganhou extensão em palavras”1.  Deduzo que a ideia é essa mesma: ganhar ex-tensão, pôr a tensão para fora, transmutar o mal-estar em ex-periência, “do "ex" (fora), "peri" (perímetro, limite) e "entia" (ação de conhecer, aprender ou conhecer). Literalmente pode ser traduzida como o ato de se aprender ou conhecer além das fronteiras, dos limites”2.

Quando Derrida se propôs a pensar o mal de arquivo3, sugeriu começarmos “pela palavra arquivo e pelo arquivo de uma palavra”. Acabo por embarcar em sua trilha para narrar uma situação ocorrida no dia 31 de março de 2021, visando fazer dela uma ex-periência em sua ex-tensão, em suas acepções. Aconteceu num evento realizado pela Rede de Atendimento Psicanalítico, grupo horizontal de analistas do qual há anos participo, e que me convidou para apresentar um recorte de minha pesquisa de mestrado em seu “Projeto Interlocuções4. Como têm sido, o trabalho que levou o título “O Mal de arquivo de Jacques Derrida e a Psicanálise: leituras possíveis para mal-estares políticos” se deu remotamente, contou com uma plataforma digital para seu acontecimento, sendo amplamente divulgado entre colegas psicanalistas e tantos desconhecidos, usuários de diferentes redes sociais. A divulgação foi bem sucedida através de disparo de flyer e chamada de vídeo e o evento, que inicialmente contemplaria somente inscritos, teve depois seu link aberto no facebook, culminando na extensão do convite para não inscritos previamente e vasto campo de possíveis interessados. Em sua gratuidade e abertura, obtivemos um bom alcance de público. Todos bem-vindos à discussão!

Havia preparado um breve texto de apresentação, um recorte da minha dissertação que tematizou o (já mencionado) ensaio “Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana” de Jacques Derrida. Para além do desafio de pesquisar esta complexa obra em árduo trabalho que agora segue em marcha, precisava criar uma nova versão do mesmo, oferecendo ao texto elementos, para mim, essenciais à discussão. Escolhi me ater a uma breve exposição de aspectos autobiográficos e da trajetória militante de Derrida como inspiração política para o enfrentamento de contradições, injustiças, traumas e desigualdades. Sua militância começa pelas palavras. Caminhei no texto através da apresentação de seu pensamento, este forjado na anti-dicotomia, no anti-dogmatismo e no anti-colonialismo, entendendo-os como ingredientes necessários à relativização e contraposição aos sectarismos, reducionismos e clausuras ideológicas que tanto fazem sofrer hoje e há tempos. São estes os ingredientes que fundamentaram o pensamento de Derrida e também seu “Mal de arquivo”, noção marcada pela primazia do mal, do mal de arquivo/mal-estar marca intransponível da vida em cultura.

Fechei o texto com a ideia do não fechamento. Este, um dos pontos sublinhado por Derrida em sua obra: “o arquivo deveria pôr em questão a chegada do futuro”, ao porvir. Afirmação progressista que situa o arquivo no campo da produção pulsante e do comprometimento com a inscrição psíquica em seu caráter constante e inacabado. Afirmação ligada à original releitura que Derrida realiza da pulsão de morte reapresenta com novo nome (pulsão arquiviolítica) e com novas palavras que destacam sua força incalculável e irreversível de destruição, verdadeiro lembrete à importância de se levar a morte à sério para então estabelecer vínculo com a vida em sua maior seriedade, mirando o futuro, o novo.

Acontece que apontar para o futuro não significa negar o passado, de modo algum. Sabíamos que era e o que era 31 de março para o Brasil e o vivemos com grande pesar a despeito da iniciativa sádica de alguns de fazer da data motivo de celebração. Sabíamos e sabemos bem o que havia acontecido em nosso país há 57 anos. Esta memória viva estava, inclusive, presente na chamada de divulgação deste evento dedicado a problematizar, como bem disse seu título, mal-estares políticos, o arquivamento de episódios traumáticos de história. E por que não o golpe militar de 1964 que ali aniversariava?

Em nosso desejo e propósito de fazer ali circular a palavra, sabíamos sim da data e seu significado, desse marco simbólico inaugurador dos anos de chumbo no Brasil. Mas, não sabíamos o que estava por chegar. Logo no início do evento, feliz pelo encontro e pela possibilidade de ter um debate humano e interessado, pelo reencontro com rostos de colegas queridos que há tempos não via, fui surpreendida por um grande ataque. O link de acesso disponibilizado para o evento foi invadido por um grupo de pessoas determinadas em fazê-lo não acontecer, em fazer acabar o encontro e a esperada discussão. Começaram com ofensas, palavras de baixo calão escritas no chat. Em seguida, apresentaram imagens de apoio à Jair Bolsonaro juntamente com imagens sobrepostas, fechando o horror com uma música estridente e ensurdecedora que impedia qualquer chance de comunicação entre nós. É o que consigo lembrar. Um sequenciamento que agora construo um tanto borrado pela violência.

Aturdida, com as capacidades de compreensão e registro atrapalhadas (era verdade o que acontecia?), tivemos nós, eu e meus colegas da Rede, que agir com rapidez. Não houve muito tempo para pensar, sequer para sentir. Entre o ataque sofrido, o dar-se conta e a realização do que ali se dava foram poucos os minutos, mas suficientes para admitir o fim daquele evento planejado. Tivemos que deixar o espaço. Ele havia sido irremediável e covardemente invadido.

Em meio à bagunça instalada, deu-se o impossível. E agora vejo que foi pela constatação do impossível que pensamos num rumo novo: a criação de um novo link! Assim, com a celeridade pedida, coletivamente, em comunicação cruzada entre colegas ali sob impacto, criamos novo link. Novo evento em novo espaço, Novo encontro e nova discussão. Alguns dos participantes, muito mexidos, não puderam prosseguir no novo espaço, outros perderam a chance do acesso, outros acessaram o novo link e retornaram. E se feliz eu estava no início pelo encontro com rostos interessados em um debate humano, tão ou mais feliz fiquei pelo reencontro com os rostos de muitos deles no painel, ainda presentes, resistentes ao horror, com a vivacidade e inteireza pedida pela situação. Novamente juntos.

Interessante me escutar agora no ato dessa escrita. Lembro bem que no momento do ataque e pós ataque, levantei defesas e só quis fazer o evento não deixar de acontecer. Era preciso ir adiante, não paralisar diante da invasão, apresentar o texto que havia preparado, lê-lo até o fim. Terminada a leitura, lembro de mencionar a importância de termos contornado a situação, mas também de escutar de colegas que ainda estavam muito impactados com a violência ocorrida. Laurinda Ribeiro de Souza foi a primeira a dar seu depoimento, palavras de quem viveu na pele os anos de chumbo e testemunhava ali a carga afetiva decorrente do episódio. Sua voz fez coro ao restante para desdobrar uma discussão sobre o texto apresentado em indissociável articulação com o que havia nos afetado em ato e no corpo.

Interessante também foi ali decantar o que aprendi com Derrida a respeito do mal de arquivo, não apenas a partir do que acabara de ler, mas pelo que acabara de viver. Lemos e vivemos o mal de arquivo em suas dimensões transcendentes à teoria e à racionalidade. Assim se faz a relação com o arquivo. Relação com o pathos, com o arder de paixão e o desassossego inerente a um jogo de forças político. Relação afetiva e afetada, marcada pela dualidade pulsional, pelos auspícios da mudez de efeitos ensurdecedores da implacável pulsão de morte/arquiviolítica. Disse Derrida e nos mostrou a ex-periência que o arquivo é esse que não obedece a cronologia e segue aos ditames da temporalidade psíquica trazendo restos do 31 de março de 1964 para 31 de março de 2021 com frescor e atualidade. O trauma, na medida em que não se inscreve, não se transcreve e surge atual, como um assalto.

Vivemos o mal de arquivo em sua demanda por trabalho psíquico, elaboração. Decantando outro ponto de aprendizado/ex-periência trazido por Derrida e articulado ao vivido, trago a exterioridade como aspecto fundamental para a realização de um arquivo, “não há arquivo sem exterioridade”. Fundamental para a construção desse arquivo, tal exterioridade deve ser justamente reconhecida. Agradeço a todos os colegas da Rede de Atendimento Psicanalítico, a todos os presentes no dia do evento, aos grupos “A Cor do Mal-estar” e “Faces do Traumático”, a todos que escreveram mensagens de acolhimento e carinho recebidas após à violência sofrida em seus efeitos de angústia e insegurança, aos amigos, aos pares do Departamento de Psicanálise, companheiro, analista, ao Blog que possibilita este espaço de compartilhamento.

Tal como o mal-estar, o mal de arquivo não cessará de surgir em sua força de acontecimento. Promoverá a destruição de links que criaremos com empenho, nos lançando às dimensões do irrecuperável e da morte. Nessa hora, não nos apeguemos a uma pretensa ressureição. Estejamos juntos em nosso substrato comum, na aposta na potência dos laços e na firmeza para a construção coletiva de novos links. Seguimos!

Notas

1.    Blog Departamento de Psicanálise. 11 de novembro de 2020.

2.    https://pt.wiktionary.org/wiki/experi%C3%AAncia

3.    Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana. Ed. Relume-Dumará. 2001.

4.    Projeto que tem como fundamento a apresentação de um trabalho e/ou trabalhos que visam o estabelecimento de interlocução entre diferentes pares, com ou sem abertura ao público.

Tânia Corghi Veríssimo é aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, mestra pelo Instituto de Psicologia da USP, membro do Grupo “Direitos Humanos, Política e Memória” do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP) e da Rede de Atendimento Psicanalítico.

Comentários

  1. Tânia, querida, que bom você ter resgatado pela escrita, este momento traumático replicado - os dois 31/1. Fiquei realmente impactada pelo que aconteceu no início de sua apresentação. Mas, o mal de arquivo corporificou-se naquele ato invasor e não impediu que as palavras pudessem confrontá-lo. Obrigada pelo texto e pela elaboração desse momento.

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