Aquilombamento Afetivo e Letramento Cá entre Nós - Entretantos

Maria Aparecida Miranda faz um relato bonito e instigante sobre as origens e a importância do Aquilombamento Afetivo e sobre a Oficina de Aquilombamento com três mulheres negras e três brancas, todas vestidas de preto, que aconteceu no evento Entretantos: Cá entre Nós,  realizado pelo Departamento de Psicanálise nos dias dias 29 e 30 de setembro. Confiram:

 

AQUILOMBAMENTO AFETIVO E LETRAMENTO CÁ ENTRE NÓS

ENTRETANTOS

O ciclo de oficinas de Aquilombamento Afetivo e Letramento que começou em setembro de 2022 no Departamento de Psicanálise chega ao Entretantos.

Uma proposta transformada num dispositivo possível de troca de conhecimentos, elaborações e criação que surgiu no Grupo A Cor do Mal Estar, foi encampada pela Comissão de Reparação e Ações Afirmativas e colocada em prática a partir de potentes encontros preparatórios - com discussões, elaborações e propostas criativas - por parte do subgrupo que se incumbiu desta tarefa.

É claro que na construção desse dispositivo tivemos também divergências e conflitos. Mas como o próprio conceito de Aquilombamento Afetivo foi nos ensinando, isso é inerente a toda convivência social e é preciso que se estabeleça um clima de colaboração para enfrentar os conflitos.

Um convite a uma experiência que supõe um território coletivo, um trabalho político de luta, resistência e estratégia de sustentação de conflitos. Esse é o espírito do aquilombamento, que pressupõe encontros e acolhimento das diferenças.

O conceito de “aquilombamento” foi proposto pelo filósofo Renato Noguera que o compreende como espaço privilegiado para gestão de conflitos. Segundo ele, um dos preceitos bantos (dos povos originários da África Central e do Oeste) está na compreensão de que o sofrimento é inerente à condição humana e os conflitos decorrem do sofrimento. Esse conceito leva em consideração diferentes epistemologias, autoras e autores como a historiadora Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e o quilombola Antonio Bispo dos Santos.

Fazer laço de forma colonizadora, segundo Noguera, é uma maneira de aplacar a angústia. Por isso, é necessário falar sobre os problemas, pois eles são compartilháveis, assim como, para o bem comum, trabalhar os afetos que estão articulados aos conflitos, para que a possibilidade de compartilhar o mesmo espaço e ser feliz não fiquem comprometidos.

O que todos esses intelectuais têm em comum é o entendimento do quilombo como espaço de resistência contra-hegemônica, onde há abertura e maior disponibilidade para lidar com as diferenças - vale lembrar que os quilombos não foram habitados somente por negros fugitivos, mas também por pessoas que estavam à margem de uma sociedade opressora.

Portanto, a ideia de oficinas de aquilombamento é criar um campo seguro, um espaço para um diálogo-polifônico. Um campo de endereçamento e reflexão sobre os sofrimentos que derivam do racismo, onde os conflitos possam emergir para que sejam trabalhados os afetos neles articulados. 

 

Mulheres de Preto e o Pacto Narcísico da Branquitude

Apresentam-se para a Oficina de Aquilombamento – três mulheres negras e três brancas vestidas de preto e começam anunciando: O silêncio branco é tudo, menos neutro, referindo-se a fala de Layla Saad.

Convocam outras mulheres como Cida Bento, Robin DiAngelo e Grada Kilomba para também se aquilombarem nesse Entretantos: Cá entre Nós.

O pacto narcísico da branquitude, conceito desenvolvido por Cida Bento, fala da forma como as instituições se organizam de modo a regular, de forma hegemônica e uniforme, os sistemas de valores e o perfil daqueles que transitam em seus corredores onde a liderança é formada por homens brancos, em sua maioria

DiAngelo fala da fragilidade branca e aponta alguns fatores criados pela branquitude para manter suas posições de poder e dominação. Esses fatores seriam o individualismo, a ideologia da meritocracia, o binarismo do bem e do mal e a superioridade internalizada.

Somos convocadas por Grada Kilomba, artista e psicanalista, a reviver suas “Desobediências Poéticas”, exposição que ocorreu em 2019, na Pinacoteca de São Paulo.

Nesta oficina recriamos uma das suas videoinstalações em que é performada a tradição dos contadores de histórias de povos africanos – os Griots, guardiões da memória coletiva das comunidades que tem como tradição a oralidade. Na voz de um griot encontram-se vestígios de uma memória cultural que inclui o que foi apagado pela história oficial. Contador de histórias que através dos cantos, das danças, das lendas e poesias, mantém a continuidade da transmissão oral dos conhecimentos, dos saberes e ensinamentos.

Convocados pelos tambores de Tiganá Santana, fomos nos deixando levar para as sombras do grandioso Baobá para ouvir histórias trazidas pelas Griots.

Na Oficina apresentada, o mito de Narciso e Eco, mito oriundo do pensamento europeu, retomado por Freud e que ganhou destaque na psicanálise, é desconstruído e questionado pela artista-psicanalista.

De início, as mulheres brancas, vestidas de preto apresentam Narciso e Eco. Narciso, o caçador conhecido por sua beleza e perfeição, amado por muitos, mas que não amava ninguém, é amaldiçoado e condenado a amar somente a sua própria imagem, ignorando todos a sua volta.  Eco é também amaldiçoada a repetir sempre que ouve, a não ter uma fala própria.

Num segundo momento, as mulheres negras vestidas de preto, questionam um Narciso negro que denuncia estar rodeado de imagens que não espelham seu corpo, que não se vê em bibliotecas, teatros, cinemas, museus, galerias e universidades, que está rodeado de imagens da branquitude. Que denuncia a ilusão e a ruptura entre a realidade e a imagem, que confronta um Narciso que parece refletir a imagem da branquitude no mundo.

O outro - não branco – torna-se aquilo que o branco não quer ser.

Narciso negro também denuncia Eco como o consenso branco, aquela que repete “inocentemente” o que é dito, alegando não ter que saber.

O Aquilombamento prossegue e abre para as reverberações do texto lido em forma de jogral pelas mulheres de preto.

Lembranças e emoções de alguém que viu a exposição na Pinacoteca são evocadas e adensadas pela situação proposta no Aquilombamento.

Por que escolher um mito branco e não um mito africano? Alguém questiona. Outros insistem na importância da desconstrução dos mitos que nos atravessam. Nada como usar um mito branco para denunciar o ideal da branquitude e a suposta universalidade branca! Outra diz. Ressoa uma ideia: quebrar o espelho que se pretende hegemônico, quebrar e interromper a ecolalia.

As falas vão se sucedendo em associações livres, e como propõe o Aquilombamento, sustentando as diferenças, as posições contrárias, as zonas de atritos, e também compartilhando afetos e outras histórias.

Surge uma conversa sobre a importância da oralidade, do corpo a corpo, de sua potência em produzir afetação, pensamento e transmutação.

Terminamos ao som do Sarau para Alforria, de Maurício Pazz, inundada(o)s e tocada(o)s pela experiência. Ainda ressoa um questionamento: como nos engajamos na luta por uma psicanálise antirracista?

É hora da branquitude se levantar e se aliar ao movimento antirracista através de ações! Não podemos deixar a tarefa de abrir caminhos apenas com as pessoas negras.

 

Esse trabalho coletivo foi realizado por Maria Miranda, Daniela Athuil, Fernanda Almeida, Heidi Tabacof, Maria Letícia Munhoz, Ana Carolina de Paula Santos, Juliana Dantas, Anne Egídio, Camila Munhoz, Cristina Barczinski, Lucia Helena Navarro, Mara Caffe, Paula Francisquetti, Adriana Dias, Ana Lúcia Panachão e  Christiana Freire. 

Participação Especial de Fabiana Gomes

Agradecemos a presença de todos que participaram!

Maria Aparecida Miranda é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, do Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar: da Invisibilidade do Trauma ao Letramento e do Grupo Generidades. Faz parte da atual Diretoria do Instituto Sedes Sapientiae. 

Comentários

  1. Não assisti essa mesa no Entretantos 3, mas acompanhei pelo relato de vcs, a importância e a força do tema!
    Parabéns 👏
    Ana Maria Leal

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