Gaza como Metáfora
Ivan Martins fala da barbárie, da miséria e da violência humana no texto
"Gaza como metáfora".
GAZA
COMO METÁFORA
Na
manhã de domingo, enquanto jovens, mulheres e crianças eram assassinados em
Israel e na Faixa de Gaza, peguei meu guarda-chuva e me dirigi à Sala São
Paulo, onde seria executado um concerto para duo de violões e orquestra. No mundo
globalizado do século XXI, estamos perfeitamente acostumados à essa forma de
esquizofrenia. Um lado da mente se choca e se consterna, o outro segue a vida,
prazerosamente.
Desço
do metrô na Estação da Luz e me ponho a caminhar, ressabiado, entre pessoas
adormecidas sob as marquises, nas calçadas molhadas de chuva. É gente enrolada
em cobertores imundos, cheirando a fezes e urina. A multidão de flagelados do
craque e da miséria tornou-se parte da paisagem na metrópole mais rica do país.
Ao contrário do padre Júlio Lancelotti, esse santo, não consigo perceber a
humanidade dessa gente abandonada, e me angustio brevemente. Ao tomar meu lugar
na poltrona confortável do teatro, porém, e ouvir os primeiros acordes da
música, os mortos distantes e os flagelados próximos desaparecem da mente. Para
conviver em paz com a barbárie, basta escondê-la dos olhos. O que não vejo não
existe, nem me perturba.
Acho
que temos aí uma metáfora possível para o que acontece no distante Oriente
Médio e aqui ao lado, nas grandes cidades do Brasil. Milhões de pessoas vivem
próximas de nós em condições terríveis, verdadeiramente sub-humanas, mas não
ligamos. Estamos longe da privação e da violência, ou somos separados dela por
muros altíssimos. Seguimos nossas vidas confortáveis protegidos por um exército
ou pela polícia. Existe um apartheid lá e outro cá. Um é racial e político; o
outro é formalmente econômico e informalmente racial. Os dois regimes de
segregação resultam em alienação coletiva em relação ao outro que sofre: ele não
é como eu, ele é o inimigo, ele nem parece humano, ele sequer existe para a
minha consciência embotada.
Mas
o outro deixado de fora, existe.
De
vez em quando, com susto enorme, ele invade o nosso espaço protegido e mata. Ou
viola. Ou destrói. Então experimentamos na carne o desamparo atroz que esse
outro vivencia diariamente. Aconteceu dias atrás na Barra da Tijuca, no Rio de
Janeiro: três médicos paulistas foram fuzilados enquanto conversavam na mesa de
um quiosque. O país ficou legitimamente chocado com a brutalidade e a
gratuidade dessas mortes. Mas o mesmo acontece todos os dias nas periferias das
grandes cidades e ninguém dá a mínima. Quando os outros se matam entre si, ou
são mortos pelas forças da nossa segurança, não é notícia e nem causa de consternação.
Talvez
se dê o mesmo na relação entre israelenses e os habitantes da Faixa de Gaza.
Mais de dois milhões de palestino vivem aglomerados ali, numa espécie de prisão
a céu aberto, sofrendo privações materiais enormes e restrição permanente da liberdade.
Apenas por serem palestinos. Eles são o outro da prosperidade israelense, seu
fantasma. O cotidiano deles transcorre sob o domínio do exército de Israel e do
grupo reacionário e violento que os oprime em nome da luta contra a opressão
colonial, o Hamas.
Até
o sábado passado, e durante muitos anos, os palestinos de Gaza foram ignorados
em seu desespero, enquanto a vida seguia normalmente do outro lado do muro e
das cercas. Então, subitamente, o terrorismo, a barbárie, a violência
inominável contra mulheres e crianças judias emergiu, tomando a forma de
imagens que circularam amplamente nas redes sociais. O horror ganhou forma
nítida. O outro passou subitamente a existir, como monstro que escapou da jaula
e agora precisa ser reconduzido ao cativeiro e castigado brutalmente.
Bombardeios, bombardeios, barbárie; crianças e famílias calcinadas sem ter para
onde fugir. As saídas de Gaza estão fechadas. Cortou-se água e luz. Caem as
bombas. O terror se reinstala na direção contrária, agora sob controle do Estado.
Penso
com meus botões que Franz Fanon está errado. Ou, ao menos, que aquilo que
Sartre disse em nome de Fanon no prefácio aos “Condenados da Terra” está
errado. A violência sem limites contra o colonizador não liberta o colonizado,
no sentido psíquico da palavra. Ela provavelmente aprisiona de outra forma,
talvez numa rede de culpa e vergonha intransponível. Um homem religioso, seja
ele muçulmano, judeu ou cristão, não pode praticar atos de violência
inomináveis e seguir psiquicamente impune. A violência desumaniza e destrói.
Ela brutaliza de forma profunda. A violência marca quem a sofre e quem a
pratica – e de alguma forma se propaga como doença social, como trauma coletivo
transmitido horizontalmente e através das gerações.
Como
ficam, psiquicamente, as pessoas em nome das quais é praticada a violência de
Estado contra o outro? Matar um inocente desarmado com as próprias mãos, como
fez o Hamas, é diferente de ver na TV os mísseis derrubando em Gaza edifícios
inteiros, onde vivem dezenas de famílias. Em termos brasileiros, talvez
equivalha a acompanhar passivamente pela TV e pelo rádio, dia após dia, a
contagem dos mortos nas operações policiais no litoral de São Paulo. Em Israel
se declara guerra ao Hamas. Aqui, se faz guerra ao tráfico e ao crime organizado,
frequentemente na forma de guerra racial e de classes. Lá existe dor, raiva e
desejo de retaliação. Aqui viceja a indiferença, amparada no medo. As situações
são muito diferentes, mas não inteiramente desiguais.
Nos
dois países existe um outro oprimido que só ingressa na consciência dominante
quando fere ou ameaça. Antes disso ele não existe; depois disso ele volta ao
oblívio da própria miséria. Ele, seus filhos e sua família inteira. Danem-se.
Freud
falava de um outro, o inconsciente, que nos habita e nos conduz. Dizia ser
impossível ignorá-lo. De alguma forma ele viria nos assombrar e infelicitar,
exigindo satisfação. Talvez as sociedades também tenham seus inconscientes,
aglomerados de pessoas postas de lado dos quais emergem os impulsos mais destrutivos.
Os desvalidos do centro de São Paulo habitam o inconsciente sujo e perigoso da
cidade. Caminhamos ao lado dele na falsa segurança de estarmos protegidos pelo
carro de polícia logo ali, mas quem sabe? Em Israel, uma sociedade próspera e
democrática tornou-se carcereira de 2,3 milhões de palestinos destituídos, cujo
ressentimento só aumenta. Não é razoável supor que, lá e cá, essas situações
possam se eternizar sem consequências.
Ivan
Martins é psicanalista, mestre em Relações Internacionais
pela Universidade de Southampton e autor de dois livros, “Alguém especial” e
“Um amor depois do outro”.
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