Cá entre nós

Quer ter notícias sobre o evento Entretantos "Cá entre nós" que aconteceu nos dias 29 e 30 de setembro no Sedes Sapientiae? Maria Laurinda Souza nos brinda com um relato sensível, ainda sob o impacto dos muitos sentimentos que o evento lhe proporcionou. Confira: 

CÁ ENTRE NÓS

 ...a solidariedade é um exercício cotidiano

sem o qual a sobrevivência se torna impossível... 

Que tal um samba? 

Mote surgido na convocação-convite, feita pelo Conselho de Direção para mais um encontro do Entretantos. Na chamada, os termos tão presentes em nossa contemporaneidade. Termos cheios de história, de significâncias. 

É com eles que proponho uma sambinha. Uma sambinha feito com uma nota só. Outras notas podem entrar (e desejo que entrem; muitas outras, cantadas e contadas por outras vozes), mas a base é uma só.

Que base seria essa? Sem dúvida, a que foi partilhada por todxs que estiveram presentes, no Sedes, nos dias 29 e 30/9/2023. Uma onda afetiva, festiva. Alegria pelo encontro, reencontro, depois de tanto tempo. Depois do tempo de telas, tempo de vírus, tempo de mortes, tempo de experiências políticas traumáticas.

Foi especial que o início acontecesse em dois pontos de encontro coletivos: o espaço do bar e o auditório. Esse bar não é mais o do Seu João, que lá estava desde o tempo dos começos; mas nesta sexta-feira guardava o chamado tão familiar: Nos vemos lá no barzinho!

No auditório, as falas de

Christiana Freire (Comissão de Reparação e Ações Afirmativas) e Silvia Nogueira (boletim online) com a coordenação de Silvio Hotimsky, também nos apresentaram, reapresentaram pedaços da história com que temos nos implicado. Falas entusiasmadas que contaminaram os que as ouviam. De um jovem negro, Richard, estudioso da psicanálise, veio a provocação que pôs lenha na fogueira: citando Fanon, Mbembe, Deivison, Isildinha, Neusa Santos e outros autores negros, denunciou o Racismo existente entre nós.

Retomo os termos do convite-convocação porque as mesas e as rodas tangenciaram ou adentraram com maior ou menor intensidade por eles. 

Os Brasis. Sim, são muitos. Com diferenças que ganharam cunho fortemente ideológico nos anos recentes. Os símbolos da pátria transformados em armas de luta, em explicitação do ódio e do fanatismo; 

Nosso lugar de fala. Quem pode falar? De que lugar? Lugar de fala não é lugar de cala, disse Silvio Almeida. Mas, quem cala, consente? Na afirmação, a negação do Racismo? Sabíamos, nós, os brancos, da existência da branquitude e da exclusão genocida que ela provocou? Provoca? Falamos o suficiente sobre os efeitos da escravização? Do colonialismo? Dos mortos sem que lhes fosse ofertado o pranto a que tinham direito? Ou, antes, das vidas a que tinham direito? 

Psicanálise no Brasil e Sociedade brasileira. Uma evidência de imbricação necessária; mas como construir essa pertinência se, usualmente, as referências nos vem de fora, de um outro lugar idealizado? Branco, europeu, patriarcal, hetero... termos nos quais é impossível persistir. Eles escoam, ecoam, convocam discussões, questionam lugares. Resgatam e criam outras experiências. Clínicas públicas, letramentos, aquilombamentos. Deveria a psicanálise ocupar os terreiros? Ou, não caberiam aqui, neste espaço, os atabaques e o Candomblé? 

Políticas de democratização. Construções necessárias. Aprendizagem marcada pela travessia recente da tirania, do terreno inóspito e árido em que se transformou o mundo das relações, resto de queimadas criminosas, falta de oxigênio nas florestas e nos pulmões. Será viável o comum? 

Políticas de desejo. Um outro possível? Um outramente como propõe Antonio Bispo dos Santos? Poderemos substituir a concorrência neoliberal, a necropolítica, por uma prática solidária, de envolvimento? Onde a dor de um, ou de muitos, possa ter acolhida? E nos comprometer a todxs? 

Nos lugares por onde transitei, partilho o prazer de alguns momentos e convoco outros, a que também partilhem o que os encantou/ instigou: 

.“mas faltam só três páginas”! fala da Denise Cardellini, que virou “meme” de quem tinha tanto a dizer e estava representando um grupo que queria coletivizar sua produção (GT-pesquisa em psicanálise e contemporaneidade). Um pedido de que o tempo fosse mais lento e houvesse mais espaço para a discussão. O que restou a ser dito? Um aberto para o futuro? 

. a generosidade de Ana Leal ao enunciar o quanto seu texto deve à leitura, contribuição de quem a ajudou a pensar e reescrever e nos falou de uma realidade tão nossa, de uma Brasilidade (com B) e de um tal bolsonarismo (que só pode ser com b minúsculo). 

. o humor/amor presente na fala de Fátima Vicente que ao contar o início das atividades no curso, no período da pandemia, foi mesclando o tema do seminário com as conversas do WhatsApp e com a pirataria, cometida por alguns participantes do seminário, que coletivizaram textos “não autorizados por seus autores”, ou outros, e se tornaram “piratas do Tietê”. Relato que emocionou os tais piratas ao escutarem a experiência do vivido que não havia sido assim simbolizado. 

. a surpresa da fala de Piero – do Grupo de Articulações teórico-clínicas: Freud-Lacan – jovem analista que representou o grupo com um texto claro e pontual. E, surpresa maior, Cristina Petri diz: hoje é a primeira vez, neste grupo de trabalho, que nos vemos pessoalmente. Até hoje só nos vimos pelas “janelinhas”. 

. o que marca a transmissão da Psicanálise em outros lugares? Como se dá a organização do grupo? Dificuldades, efeitos das idealizações, conquistas... Apontamentos feitos por Nanci de Oliveira Lima, representando o GTEP. 

. o grupo das amigas – Paula, Yone, Ana Lucia, Marli, que nos apresentaram uma visita especial à Colômbia. No relato, o fio da amizade (gesto privilegiado de hospitalidade) e a atenção do olhar para os sinais daquela cultura que revelam a importância da memória do que foi cruelmente vivido e convoca a outros tempos; tempos de paz e justiça.

. as viagens de Miriam Chnaiderman pela cidade para chegar aos Céus onde um grupo de teatro (Caleidoscópio), trabalhando com bonecos, conta a história de amor entre “o pescador & a mulher esqueleto”. Amor no enredo da peça. Amor no encantamento da analista convidada a viver essa experiência. Inquietações do que significa o “centro” e a “periferia”; os preconceitos que nos atravessam e que se revelam na cor, nos gestos, no uso da linguagem. 

Na minha travessia por esse “Cá entre nós” também construí alguns fios: caminhos que foram das narrativas da política, dos afetos pulsantes do ódio e do medo, dos relatos de cenas traumáticas, das desigualdades, da violência, para as frestas onde a arte nos permitiu lançar luz sobre o mundo das sombras. No tecido construído por esses fios, a Psicanálise. 

P. S. Meus agradecimentos ao Conselho de Direção pelo intenso trabalho desta gestão e, especialmente, a Fatima Vicente, Marcia Ramos e Paulina Rocha, pela organização deste Entretantos.   

M. Laurinda R. Sousa é membro do Departamento de Psicanálise, psicanalista e escritora. É colunista do Blog do Departamento.

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