A Substância - De que substância somos feitos?
Carla Belintani tece um
texto forte e importante sobre o filme “A Substância" trazendo questões
inquietantes sobre as agruras de nosso envelhecer. Confira!
A SUBSTÂNCIA
DE QUE SUBSTÂNCIA
SOMOS FEITOS?
Carla Belintani
“Se pudesse ser
diferente! Se eu permanecesse sempre jovem e o retrato envelhecesse! Por isso -
por isso - eu daria tudo! Daria a minha alma por isso!”
O retrato de Dorian Gray
O filme A Substância, estrelado
por Demi Moore, relata a história de uma atriz renomada, que é desligada de um
canal de TV por ter 50 anos, e as consequências desse desligamento. Qualquer
semelhança com a realidade não é mera consciência.
Logo na abertura, a protagonista
é homenageada na calçada da fama de Hollywood. Com a visão da câmera fixa sobre
a calçada, acompanhamos, etapa por etapa, a construção midiática de seu nome: a
terra, o cimento e o acabamento com a estrela até a queda do mito, quando seu
nome, já sujo e desgastado pelo tempo, é pisoteado por pés apressados. Essa
sequência, que se encerra com sujeira de ketchup caindo sobre seu nome na
calçada, em alusão ao sangue humano, resume a narrativa que o filme vai se
aprofundar.
Elizabeth Sparkle acaba de
completar 50 anos e apresenta um programa fitness num canal de TV. Apesar de
linda, ela é demitida pelo diretor, que busca agora uma apresentadora “mais
jovem e mais gostosa”. Após a demissão, Elizabeth sai desnorteada da empresa e
sofre um acidente de carro ao ver sua foto sendo rasgada em um outdoor. Ver seu
corpo sendo literalmente rasgado no painel parece ser a metáfora exata para o
sentimento que a personagem nutre sobre si mesma.
A temática do filme nos remete ao
artigo “Yo horror”, de Diana Singer, debatido recentemente no grupo de trabalho
sobre envelhecimento, no Departamento de Psicanálise do Sedes. No texto, Singer
interpreta a beleza e o culto ao corpo como uma exigência social que mantém o
sujeito preso na eterna e exaustiva busca pela juventude perdida. Esforço em
vão, já que o corpo físico real não compreende qualquer código social,
revelando em sua jornada as marcas naturais do tempo. Ou seja, a tentativa de
constante manutenção da juventude através de procedimentos estéticos torna-se
uma realidade insustentável.
Testemunhar a própria passagem do
tempo exige do psiquismo recursos elaborativos para incluir esse “corpo
estranho” que tanto golpeia os ideais narcísicos. Esses recursos têm relação
com as primeiras experiências desse sujeito, ainda na infância, instaurando os
processos iniciais de identificação. O olhar do outro se faz presente desde os
primórdios da constituição do eu, definido por Lacan como “estádio do espelho”,
momento em que o eu ideal se instaura a partir da visão da imagem unificada do outro,
retirando a criança de um estado de total indiferenciação.
Se há falhas nesse processo
inicial, enfrentar as adversidades da passagem do tempo faz com que o eu não se
identifique com a imagem de si refletida no espelho, provocando uma inquietante
estranheza.
Singer define o “eu horror” como
o negativo do eu ideal, gerando uma angústia de desmoronamento.
Quando Elizabeth vê em sua imagem
a ruína do eu ideal, ela vive a experiência de contato com o horror.
No livro “O retrato de Dorian
Gray”, o espelho é representado pelo quadro que envelhece enquanto Dorian
permanece jovem e belo.
Empenhada na busca por “uma
versão melhor de si mesma”, Elizabeth cria Sue, interpretada pela atriz
Margaret Qualley, a partir da ingestão de uma substância. Ela dá luz à sua
melhor versão, que nasce literalmente de uma fenda aberta em suas costas. A tal
substância rejuvenescedora entrega o que promete com uma condição: que cada
versão dessa mesma pessoa viva em ciclos alternados de uma semana. Enquanto uma
versão está no mundo, a outra dorme nua e inerte no chão de um banheiro frio e
escuro.
O filme é aflitivo e a presença
visceral de sangue e camadas de pele de um corpo já inconsciente revela que a
ausência do sujeito de desejo foi preenchida pela busca incessante por um
ideal.
Nesse embate entre velho e novo,
o espelho e suas diversas imagens que se fundem entre Elizabeth e Sue, causa
mal-estar. Elizabeth poderia encerrar esse ciclo, mas é incapaz de sustentar
sua imagem envelhecida, optando por manter-se viva na pele de Sue. Como um
vampiro que se alimenta de sangue humano para conquistar a imortalidade, Sue
devora Elizabeth, sugando qualquer traço de sua subjetividade.
O laboratório que produz a
substância é clandestino e inabitado. Elizabeth e Sue têm contato apenas com
uma voz mecânica e impaciente que repete constantemente que as duas são a mesma
pessoa.
Essa relação dual se torna cada
vez mais violenta à medida que Sue decide desobedecer a regra e permanecer viva
por mais que uma semana. Em um círculo vicioso e repetitivo de ódio contra si
mesma, Sue mata aos poucos sua versão original envelhecida - Elisabeth -,
representando o polo negativo do eu ideal e, assim, destituindo Elizabeth de
sua instância simbólica para lidar com os embates do tempo.
Não há pacto com Eros. Sem Sue,
Elizabeth não pode existir. Há o predomínio de Thanatos, convocando a violência
extrema contra o próprio eu. O único destino possível é a morte. E, ao morrer,
mata-se o eu horror que tanto a tortura. Na corporificação final de Elizabeth,
ela se torna um monstro.
O espelho é personagem recorrente
na literatura. No conto de fadas Branca de Neve, o espelho adquire vida e diz à
madrasta que ela não é a mais bela e, sim, sua jovem enteada. A partir de
então, a obra é costurada pelo desejo de morte.
Já Narciso morre afogado,
inebriado pela própria imagem refletida no rio.
É o olhar do outro que nos
constitui na condição de sujeito, assim como o olhar da mãe proporciona uma
existência ao bebê.
Recentemente, um senhor bastante
idoso que reside em uma casa de repouso, disse: “Ninguém conversa comigo.
Parece que estou deixando de existir”. Da mesma forma, pessoas em situação de
rua são quase sempre atravessadas com o olhar invisível de quem passa.
Sem o olhar do outro, não há
campo de desejo possível. Somos dependentes das relações para construir um
lugar subjetivo.
Isso é fundamental para lidarmos
com as perdas implicadas no processo de envelhecimento, sem que o sujeito deixe
de existir e se perca em uma experiência de desamparo.
A Substância é um filme
imprescindível para pensarmos na Elizabeth que existe dentro de cada um de nós.
Carla Belintani é psicóloga e psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É fundadora do projeto A Casa Frida - Luto, Arte e Psicanálise.
Querida Carla, sempre acompanho seus escritos.Parabens por esse texto tão tocante.
ResponderExcluirImportante não tornar a velhice, num
tormento!
Beijos