Por um Aquilombamento Afetivo

Hélvio Benício, membro do Coletivo de Pessoas Negras do Instituto Sedes Sapientiae faz um lindo e importante relato sobre o evento Novembro Negro em Arte realizado no último 27 de novembro. Confiram.

 POR UM AQUILOMBAMENTO AFETIVO

Ao coletivo de pessoas negras, pela diáspora que nos dispersou, mas não nos desfez.

O Novembro Negro em Arte, no dia 27 de novembro, inaugura no Instituto Sedes Sapientiae um espaço de presença, criação e afirmação. O dia se constituiu como um gesto coletivo, um deslocamento ético e político que convocando as vozes, as cores e as potências de artistas negras e negros, afirmando que a arte não é ornamento, mas reinvenção radical da experiência.

A proposta de um aquilombamento afetivo encontrou sua expressão concreta: corpos, narrativas e traços que se entrelaçaram, criando um território de pertencimento e continuidade. Como lembra Nego Bispo, quilombo não é só lugar: é modo de existir, de criar e de resistir; é a arte de “desobedecer inventando”, um conhecimento que brota do território, da experiência e da vida em comum. Reverberadas por essa perspectiva, as obras apresentadas não reproduziram formas: elas produziram mundos.

A exposição afirmou e continuará afirmando que a arte, mais do que representar algo, desloca, desestrutura e reorganiza os campos sensíveis e simbólicos. Ela cria outras respirações possíveis dentro da instituição, abrindo frestas para que novas éticas surjam — éticas que convoquem a coletividade, que devolvam à estética sua dimensão política e que reafirmem que não há clínica sem território, sem corpo e sem memória.

O AQUILOMBAMENTO AFETIVO faz na mostra artística o seu potencial agenci(a)dor: a pactuação de um compromisso de seguir produzindo espaços de permanência, cuidado e invenção; seguir escutando e construindo redes que fortaleçam a vida preta, parda e indígena, e seguir permitindo que a arte desfaça silenciamentos, renomeie dores e inaugure futuros.

Uma aposta no que se cria juntos, uma celebração da potência que nasce quando o saber ancestral encontra a prática institucional e, juntas, reinventam o mundo possível.

Uma comunidade que se cria na lida diária, na conversa que se repete, na partilha que se reinventa. A presença sempre se fará no corpo-a-corpo da experiência, reafirmando que a arte não se sustenta apenas na parede, mas no encontro vivo entre quem cria e quem testemunha. Expor é necessário, mas não suficiente. O essencial é se expor: oferecer algo de si ao coletivo, deixar que a comunidade toque, atravesse, acolha e transforme.

A experiência da mostra revela que arte só existe porque existe gente. Porque existe o gesto de vir, de estar presente, de sustentar o trabalho e a própria história diante de outras histórias. A presença não é detalhe: ela é o próprio acontecimento. É ela que tece o sentido político e afetivo neste Novembro Negro, afirmando que criar caminhos implica construir relações, abrir escuta e ampliar pertencimentos.

Assim, a abertura de uma exposição do Coletivo de Pessoas Negras do Instituto Sedes Sapientiae, celebra aquilo que uma instituição só pode aprender com uma comunidade viva: que toda obra é também um encontro, e que toda travessia só se faz quando caminhamos juntos — na arte, na palavra, no cotidiano, na coragem de aparecer.

Agradeço ao Coletivo Negro do Instituto Sedes Sapientiae, e, sobretudo, às que vieram abrindo caminhos. Entre elas, Maria Miranda, psicanalista que tem sustentado um trabalho fundamental ao inserir a questão racial como eixo estruturante da escuta clínica. Em sua prática, ela recoloca o que tantas vezes foi escamoteado na história da psicanálise:  o impacto do racismo na constituição do eu, a violência simbólica que atravessa o corpo preto, pardo e indígena, e a urgência de um discurso que devolva autoria aos sujeitos silenciados, e a possível subversão da gramática do sofrimento.

Ao lembrar a canção “O Que É, O Que É?”, de Gonzaguinha (1982), Maria Miranda convoca mais do que um verso. Quando ela diz “eu acredito é na rapaziada... eu ponho fé na fé da moçada...”, faz ecoar não apenas uma esperança, mas uma ética: a confiança radical na juventude negra como força de invenção, resistência e reinício. Em sua fala, o verso é chamamento, para que tomemos a palavra, a memória e a história pelas próprias mãos, rompendo com tutelas coloniais e com as versões sobre nós que não escrevemos.

Esse gesto encontra ressonância em toda uma discursiva que nos levanta:

Abdias do Nascimento, com o quilombismo como mapa político e existencial;

Lélia Gonzalez, que descolonizou a linguagem e denunciou o racismo como tecnologia cotidiana;

Neusa Santos Souza, que nos mostrou que o sofrimento psíquico negro tem causas históricas e não patologias individuais;

Grada Kilomba, que expõe as máscaras coloniais e devolve à pele negra a potência de narrar-se.

É nesse entrelaçar de vozes, e nos territórios de afeto que construímos, e atuamos, que este dia se faz: um dia de estar vivo. Estar junto não é apenas ocupar o mesmo espaço, mas reconhecer-se na travessia, partilhar histórias, e insistir na continuidade, e fazer presente.

Que este encontro siga no que Miranda em sua fala de abertura re-vivenciou:

que nossa clínica também é política;

que nossa palavra é ruptura;

e que, para seguir, é preciso acreditar, como nos ensinou Gonzaguinha, na rapaziada, na moçada que segura o rojão e não larga a mão dos seus.

Agô

Hélvio Benício é psicanalista, artista plástico, músico e cantor lírico. É membro do Coletivo de Pessoas Negras do Instituto Sedes Sapientiae.


Comentários

  1. Texto lindissimo, emocionante e com muitas referências imprescindíveis para a compreensão sobre a arte e a beleza que é aquilombar-se!!!

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  2. Hélvio, seu texto é muito potente e deu voz a negritude que expôs seu trabalho, na forma de arte!
    Ana Maria Siqueira Leal

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