Breve homenagem à obra de Wagner Schwarz

Breve homenagem a Wagner Schwarz
Alessandra Affortunati Martins Parente




Na década de 60, Lygia Clark e Hélio Oiticica embarcaram em experimentações artísticas revolucionárias. Retirando a primazia do olhar sobre os outros sentidos, criaram obras nas quais estavam presentes sonoridades e aromas. Também tinham parte nas diferentes peças a sensibilidade tátil e a participação corporal dos visitantes – a ideia era evidenciar como estes não eram meros espectadores, mas integravam os trabalhos artísticos. Obras construtivas de vanguarda transformaram-se em objetos destituídos dos limites do quadro. Materializar o que se mantinha no registro virtual significava profanar a arte moderna, reduzida aos moldes que a sacralizavam. Salto que atravessava molduras, detentoras de representações sublimadas, para atingir os mais diversos fluxos do corpo. Em suma: um rasgo de invólucros limitantes para conquistar amplitudes sensoriais imprevisíveis. Penetrar, manusear e vestir obras eram gestos que arrancavam da arte sua posição elevada ou transcendente para aloca-la nas mãos e nos corpos de qualquer um.

Epígono de Oiticica e Clark, Wagner Schwarz desdobra em performance o que antes era objeto de arte. O artista já se ocupava dos Transobjetos de Lygia Clark quando visitou uma exposição em Paris. Lá defrontou-se com um dos Bichos (1960) da artista envolvido por uma caixa de acrílico. Em sua performance, inspirada na série Bichos, Schwarz traz à cena a carne daqueles objetos artísticos – seu próprio corpo. Disponibiliza-o para manuseio, como Lygia Clark fez com seus Bichos. O corpo intensifica a obra de Clark e outras fronteiras rígidas do campo artístico se dissolvem. No encontro entre artista e espectador, promovido pela performance, surgem questões como: Quais os limites entre cultura e natureza? De quem é, afinal, o corpo que costumo considerar meu? Qual é o perfil exato da figura humana? Ali a matéria corpórea do artista assume formas múltiplas. O que se observa são inúmeros desenhos, cujas linhas são traçadas pelo visitante ao manipular a carne do artista. Esses contornos inéditos, que se apresentam durante a performance, dilatam estruturas físicas, presas a normatividades sufocantes. Vídeos na internet são capazes de mostrar a beleza de La Bête – a delicadeza dessas linhas corpóreas que esboçam figuras inesperadas.

Com formação extensa em dança e diversas obras performáticas no currículo, Schwarz oferece seu corpo para esgarçar as fronteiras da linguagem. O artista carioca não se restringe a um único gênero artístico. Seus percursos literários carregam essa experiência corpórea da dança e da performance. Em seus textos, as palavras também respiram conforme o movimento – a escrita é trabalho corpóreo, como já definia Lygia Clark.

Língua incompreensível, porém, àqueles que vociferam pedófilo, safado, sujo, porco, pervertido, vagabundo. Na frente do MAM-SP ou da exposição Queermuseu estão os mesmos sujeitos defensores da moral e dos bons costumes. Importante notar, como muitos internautas já salientaram, que a preocupação não é de fato com as crianças “abusadas” nos museus. Fosse isso, teríamos manifestações Brasil afora em lugares nos quais efetivamente ocorreu violência sexual. Um único exemplo é capaz de ilustrar o disparate dos argumentos desses manifestantes. No dia 15/08/2017 houve uma denúncia contra agentes socioeducativos da Fundação Casa de Parada de Taipas que teriam cometido atos de violência sexual contra meninas que cumprem pena ali (https://goo.gl/rtvdvG ). Nenhum desses manifestantes esteve lá.

É ingenuidade insistir na velha tecla iluminista e considerar que falta aos censores de plantão o banho esclarecedor do conhecimento. É preciso reconhecer: há um projeto intelectual entre os conservadores. Ele é contrário aos direitos humanos universais e à civilização global. Uma agenda antidemocrática, capaz de sufocar as conquistas pós-68, parece ser o que dá o tom aos discursos mais reacionários. Símbolos, valores, representações culturais emergem nessas vozes. O que existe, por conseguinte, é uma batalha simbólica e discursiva, movida sobretudo por afetos e valores arraigados. Gritar em frente ao MAM ou ao Santander Cultural é parte dessa briga simbólica, cujas consequências efetivas não são nada desprezíveis.

Como psicanalistas, cabe-nos a tarefa de explicitar as camadas mais recônditas dos afetos envolvidos nessa disputa, defendendo a liberdade sexual e de expressão, bem como a igualdade de condições para uma vida digna entre todos os cidadãos. Não temos mais tempo a perder. Mãos à obra.

Alessandra Affortunati Martins Parente é psicanalista e pós-doutoranda (FFLCH-USP).


* imagem de La Bête de Wagner Schwarz:http //www.miguelarcanjoprado.com/2016/04/06/que-bom-que-houve-essa-abertura-diz-wagner-schwartz-no-festival-de-curitiba/
** imagem de Bichos de Lygia Clark: http://www.revistacliche.com.br/wp-content/uploads/2013/05/2855.jpg

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