Evento sobre Psicanálise Contemporânea

Realizado pelo Departamento de Psicanálise e organizado por Christiana Freire, Gisele Senne de Moraes e Natalia Gola, aconteceu no último dia 19 de agosto no Sedes Sapientiae, o evento sobre Psicanálise Contemporânea.

À convite da organização, o Blog do Departamento produziu um texto em que comenta de forma resumida a fala dos palestrantes.

Em sua primeira parte, o evento contou com os psicanalistas Fernando Urribarri e Renato Mezan  falando sobre o “A Geração pós- Lacan”.

Com o intuito de historiar a psicanálise em geral e a psicanálise francesa em particular, o psicanalista argentino Fernando Urribarri iniciou sua fala comentando que nós, psicanalistas sul americanos, estaríamos em uma posição privilegiada ao reconhecer a unidade do movimento pós-lacaniano e seus muitos e brilhantes psicanalistas que contribuíram de forma importante para a psicanálise contemporânea. Um convite a nos apropriarmos deste legado, longe das paixões alienantes ou das militâncias. Cita a importância do Sedes Sapintiae como sede de uma psicanálise freudiana e pluralista.

Na história da psicanálise contemporânea – particularmente nos anos sessenta - seria preciso reconhecer o valor de Lacan, o mais brilhante, criativo e sedutor dos psicanalistas de sua época (e seu projeto de retorno a Freud), e por isso uma referência para se analisar as contribuições de seus conterrâneos ainda que fosse “com Lacan”, “contra Lacan” ou “além de Lacan”. Conrad Stein, Andre Green, Gui Rosolato, Serge Leclair, Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis, Joyce MacDougall, Didier Anzier, Piera Aulagnier, Cornelius Castoriades, Julia Kristeva são alguns deste “dream team” francês, que após terem tido a oportunidade de conhecer e debater as ideias de Lacan criam a partir dos anos setenta, uma consistente, fecunda e criativa rede de ex-lacanianos em que espaços novos como as revistas de psicanálise ou debates entre autores permitem a circulação de seus textos e ideias.

Ainda que estas revistas e trocas se extingam nos anos noventa, Urribarri nos lembra de que este legado produziu uma possibilidade de se pensar a psicanálise contemporânea e cabe às gerações seguintes decantar esta nova matriz, levando em conta o contexto histórico e seus novos paradigmas e o fato de que a verdade última é da clínica psicanalítica, quem decide sobre a funcionalidade dos conceitos.

Como exímio historiador da psicanálise, Renato Mezan recupera sua autoria do prefácio para os dois volumes de Psicanálise entrevista (ambos organizados por Mara Selaibe e Andréa Carvalho, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 2014/2015)  que em suas 751 páginas apresenta 35 entrevistas das quais um time de importantes psicanalistas, muitos deles franceses, revelam a multiplicidade de linhas teóricas, criações e rupturas dos institutos de formação, e de certa forma historiam os principais fatos do movimento psicanalítico, suas crises e disputas, mas principalmente o intercâmbio entre as heranças dos grandes mestres a partir de Freud, em um diálogo fecundo entre seus discípulos, dissidentes e divulgadores, traçando um panorama fascinante da psicanálise nos últimos sessenta anos. Na  difícil tarefa de organizar os autores para o prefácio, acabou utilizando um critério por grupos de pertença: anos 50, 60, e 70.

Mas lembra do fato de que esta fértil produção da psicanálise, que também produziu uma comunidade de referências, transferências, rivalidades e solidariedades, precisava ser pensada levando em conta o período do pós-guerra. Recupera os anos 20-30 e autores como Fenichel, Reich, Karen Horn, Sachs, Melanie Klein que falaram em nome próprio e vaticina sobre a possibilidade de haver uma espiral, um ciclo em que na história da psicanálise acontece uma ruptura a cada 30 anos, nascendo daí uma nova e produtiva leva de autores.

Na segunda parte do evento, Fernando Urribari e Decio Gurfunkel dividiram a mesa para falar sobre “A clínica do negativo”.

Urribarri afirmou que a psicanálise contemporânea se caracteriza por um novo objeto de pesquisa (o par analítico), pela complexidade do trabalho psíquico do analista que passa a ser marcado pela heterogeneidade, e pela assunção na clínica de um novo objetivo de tratamento, o de transformar o manifesto em pré-consciente.

Se na psicanálise freudiana o paciente paradigmático é o neurótico, na psicanálise pós-freudiana o psicótico, na psicanálise contemporânea são os pacientes difíceis, o que leva as pesquisas em psicanálise se voltar para os limites do analisável. A questão se o paciente é ou não analisável é, de certo modo, reformulada, e a analisabilidade passa a ser uma questão singular de cada par analítico – analista/analisando. O objeto de pesquisa psicanalítica passa a ser a terceiridade, o campo que se constitui na análise entre o paciente e o analista, ou, se preferirmos, o espaço potencial criado pela dupla analítica a partir do enquadre analítico no qual os movimentos de simbolização se tornam possíveis.

A atenção se volta para o enquadre analítico cuja função básica passa a ser a de representação e o objetivo da análise passa a ser acompanhar o movimento de representação sob as condições deste enquadre. O enquadre, portanto, passa a ser aquilo que garante a simbolização.

São os pacientes como o antianalisando de Joyce Macdougall ou aqueles que sofrem de angústias da série em branco (psicose branca, luto em branco) descritos por Green que produzem essas mudanças no campo da pesquisa psicanalítica e na técnica.

Do ponto de vista técnico, a escuta e o trabalho psíquico do analista se tornam bem mais complexos e o trabalho representativo se dará a partir do eixo da transferência e da contratransferência. A escuta se dá de forma heterogênea (como veremos abaixo) e a contratransferência se coloca como um novo território, o território imaginativo, que exige um complexo trabalho de perlaboração do analista que poderá levar à intervenção analítica. Um trabalho apoiado na ideia de enquadre interno do analista e que envolve um processo terciário do analista. De maneira mais sistemática, podemos dizer que as mudanças na técnica se organizam em torno de 5 eixos:

   1)   Escutar e entender o paciente (escutar o discurso manifesto em si, o processo secundário). Urribari brinca: se o paciente diz que ele estacionou o carro na porta a primeira coisa que temos que fazer é escutar e entender que ele estacionou o carro na porta!

   2)   Imaginarizar: movimento de ligação no qual o analista imaginariza o que está acontecendo a partir do discurso do paciente.

    3)   Associar: corresponde ao movimento de desligamento do processo secundário do paciente no qual o analista associa e escuta seu próprio movimento de associação

  4) Arquivar: o analista funciona como arquivista do pré-consciente da história transferencial

    5)   Intervir: o analista propõe com muita prudência o que talvez seja o trabalho com a contratransferência.

Finalmente, essas mudanças redefinem o objetivo da clínica psicanalítica contemporânea, que passa a ser não mais o de tornar consciente o inconsciente, mas sim fazer dizível e pensável aquilo que está manifesto ou, em outras palavras, permitir a construção do pré-consciente do paciente.

Décio Gurfinkel trouxe para discussão o tema do negativo na clínica, articulando as questões do sono branco e as depressões.

Retomando as pesquisas de relações de objeto através da história da psicanálise, ressalta o foco dado pela psicanálise contemporânea ao elo de ligação entre self e objeto para além da discussão sobre o problema do self e do objeto. Sendo assim, as questões de ligação e desligamento passam a interessar. Esse tipo de pesquisa fertiliza o pensamento clínico de Green, que vai colocar o trabalho de simbolização em primeiro plano, definindo-o como um trabalho resultante de um movimento dinâmico de disjunção e conjunção de representações.

Podemos aproximar o trabalho do negativo dos movimentos disjuntivos, de separação ou diferenciação que se apresentam de três maneiras: um negativo universal, como no recalque primário, uma negativação desse momento inicial, próprio da concepção do aparelho psíquico; o negativo patológico onde não há possibilidade de conjunção, ou de síntese, como na dúvida da neurose obsessiva; uma negatividade mais radical dos casos limite, onde há uma impossibilidade de trabalho na reunião dos elementos cindidos.

A simbolização envolve um movimento dialético de:
1 - afirmação,
2 - negação,
3 - síntese, criação do terceiro.

Esse modelo de simbolização tem a ver com o processo de criação de objetos ou de construção, nessa síntese que serve de reunião dos elementos divididos. O trabalho de simbolização é apresentado como um movimento dinâmico de divisão de seus elementos originais, e sua posterior conjunção ou ligação, criando um terceiro elemento.

Décio propõe pensar as articulações entre sono branco (sono sem sonhos) e as depressões. Para isso recoloca as questões próprias do sono/sonho, como numa reciclagem da teoria dos sonhos na clínica e acrescenta que talvez na atualidade não seja mais possível falarmos de uma teoria do sonho sem uma teoria do sono.

Embora na Interpretação dos sonhos Freud fale do desejo de dormir, da luta da vida psíquica que, por um lado busca se manifestar e de outro busca o adormecimento, produzindo a dinâmica do sono/sonho ou a luta entre o apagamento e a busca de emergência, o sono é um tema B. Mas no sono, o eu da vigília deve ser colocado de fora para que outra forma de expressão psíquica possa acontecer, experiência que é fundamental para a criatividade humana.

O colapso do sonhar seria uma negatividade radical, quando a falta de simbolização toma conta da cena.

Décio pergunta: Existem pessoas que não sonham? Para Freud, a ausência de sonho é efeito do recalcamento. Mas será sempre assim?

Aponta para a ligação entre a falta de sonho e adoecimento psíquico, na esteira de Marty que levanta a ligação entre a falta de sono e adoecimento somático. Este, por sua vez, levanta a hipótese de uma falha do funcionamento onírico como uma falha do funcionamento pré-consciente. Fala das produções de sonhos operatórios, sonhos crus, e como estes nos informam sobre algo que se passa na clínica. Não são sonhos de desejo, como aparecem nas clínicas das neuroses.

Nesses casos, estimular, recuperar, reconstituir a experiência onírica faz parte do trabalho clínico. Propõe que o sono/sonho não deva ser olhado apenas pelo seu conteúdo, e sim como experiência de uma função psíquica.


Equipe do Blog: Adriana ElizabethDias, Ana Carolina Varsarhelyi de Paula Santos, Fernanda Borges, Gisela Haddad

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