"Sobre o orgulho de ser brasileiro" a colunista do Blog do Departamento Maria Laurinda Ribeiro publica um belo texto, um convite ao debate e ao esforço do pensamento

Sobre o orgulho de ser brasileiro

Paulo Freire é considerado filósofo de esquerda e seu método
de educação se baseia na luta de classes... Os resultados são catastróficos
e  tal método já demonstrou em todas as avaliações internacionais que
é um fracasso retumbante”(Stefanny Papaiano)

Para que serve a utopia?

Ainda temos esperança no futuro?

Tantos desatinos políticos. Tantos tropeços nos discursos. Tanto poder massificante da grande mídia!
Respondendo à primeira pergunta, Eduardo Galeano afirmou que a utopia “serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

Então, vou partilhar com você, alguns passos no meu caminho pela escuta indignada da notícia citada acima.

Começo pela descoberta de um livro precioso: Como aprendi o português e outras aventuras, de Paulo Rónai. O título em si já aponta para uma aprendizagem que pode ser uma aventura e, portanto, uma descoberta, um prazer. 

Paulo Rónai, num tom afetuoso e comovente, conta como foi em 1939, a sua descoberta da nossa língua depois de pedir a uma loja em Paris “As cem melhores poesias líricas da língua portuguesa”.
“O livrinho chegou-me às 9 da manhã num dia das férias de natal. Às dez, eu já tinha descoberto o único dicionário existente nas livrarias de Budapeste... Atirei-me, então, às poesias com sôfrega curiosidade. Às três da tarde, o soneto “Sonho Oriental”, de Antero de Quental, estava traduzido em versos húngaros: às cinco, aceito por uma revista, que o publicaria pouco depois”.

Iniciou-se, assim, o que Paulo Rónai chamou de a grande aventura intelectual de sua vida: a descoberta do Brasil através de sua literatura.

Por que o livro me encantou? Além do prazer literário, da forma atraente de relatar suas experiências com a língua, ele me instiga pela ousadia corajosa de Paulo Rónai em se tornar, através da língua, um brasileiro.

Mas é sobre outro Paulo a notícia que me indignou. Ele, também, um brasileiro, mas brasileiro nativo. Brasileiro que lutou a vida toda para que a população pobre tivesse acesso à aventura apontada por Ronái: a aprendizagem e descoberta nas letras do sentido de suas experiências de vida.
É sobre Paulo Freire, educador reconhecido internacionalmente e condecorado, em 2012, por unanimidade, na Câmara e no Senado, como Patrono Oficial da Educação brasileira e a quem o desatino de alguns quer desqualificar e destituir, destruindo no mesmo ato, o orgulho de sermos brasileiros.

O projeto de lei apresentado no site do Senado pela estudante Stefanny Papaiano, apoiadora do Movimento Escola sem Partido, cuja bandeira é o combate ao que eles denominam como “Marxismo cultural”, pretende retirar de Paulo Freire o merecido lugar de reconhecimento, reproduzindo a violência da ditadura civil militar que o considerou traidor e o prendeu por 70 dias, em 1964, quando coordenava o Plano Nacional de Alfabetização, no governo de João Goulart. Em seguida, Paulo Freire exilou-se só retornando ao país após a promulgação da Anistia, em 1979.

Outro aspecto trágico dessa proposta é que, o que poderia ser  apenas uma estratégia indecorosa de autopromoção, já conta com o apoio de quase 15.000 assinaturas (dados de 23/9) precisando de apenas mais 5.000 para entrar na pauta do Congresso.

A esse movimento sempre me ocorre nomear: Partido sem Escola, já que, com certeza, faz falta a escolaridade aos adeptos dessa proposta. Mas não uma escola bancária como dizia Paulo Freire, aquela que simplesmente reproduz o conformismo e alienação, mas sim uma escola crítica, libertária e transformadora.

Paulo Freire foi um educador de esquerda? Como se entende isso? Se ser de esquerda é lutar pela dignidade dos que são considerados à margem da sociedade, pela maioria que tenta ultrapassar a linha da miséria a que a economia brasileira os destinou, ou é, na luta de classes, defender o direito dos oprimidos, é ser oposição a regimes autoritários e predadores dos direitos humanos, sim, então somos muitos os que nos orgulhamos dessa forma de ser brasileiro. E que, como Paulo Freire, mantemos a utopia de que os “ninguéns” deste país tenham seu justo reconhecimento como “Alguém” com nome próprio, sobrenome e desejo.  E que a educação deste país possa ser uma “prática da Liberdade”, “o meio pelo qual homens e mulheres lidem de forma crítica com a realidade e descubram como participar na transformação de seu mundo” (Paulo Freire).

Maria Laurinda é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise Teoria e Clínica, autora dos livros “Violência” (2005) e “Vertentes da Psicanálise” (2017) ambos da Coleção Clínica Psicanalítica, ed. Casa do Psicólogo.
Paulo Rónai (1907-1992) foi tradutor, revisor, crítico, professor húngaro naturalizado brasileiro de francês e latim no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro.


Paulo Freire (1921-1997) foi educador, pedagogo e filósofo, autor da pedagogia do oprimido e defendia uma escola que ensinasse o aluno a “ler o mundo” para poder transformá-lo.

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