Queermuseu, MAM e o que será da vez do MASP? Fascismo e fanatismo à brasileira - Maria Silvia Bolguese

Arte, cidadania e política são temas que nos últimos meses estão em destaque e tem gerado grandes polêmicas, provocado censura (encerramento de exposições, de peças de teatro, protestos cerceadores em frente a museus), mas também manifestações a favor da liberdade de expressão (nas redes sociais e em outros meios de comunicação). O Blog publica esta semana dois textos sobre esse assunto. Confiram hoje o ótimo texto da psicanalista e colunista do Blog Maria Silvia Bolguese, membro do nosso Departamento: Queermuseu, MAM e o que será da vez do Masp? Fascismo e fanatismo à brasileira.

Queermuseu, MAM e o que será da vez do MASP?
Fascismo e fanatismo à brasileira.

Maria Silvia Bolguese

O site Gospel Prime exibe a manchete: “Exposição coloca imagens de Jesus ao lado de pedofilia e zoofilia.” Na matéria, em que aparece ‘queermuseu’ traduzido por museu transviado e o banco que abrigava a exposição ganha a alcunha de ‘Satãder’, é lançada uma petição de ‘Repúdio à exposição blasfema’, e uma acusação é feita ao movimento LGBT por supostamente usar a bandeira da intolerância para escarnecer, atacar e vilipendiar aquilo que outros consideram sagrado e, ao mesmo tempo, não tolerar nenhum tipo de crítica.

Mesmo mencionando a posição do presidente do banco, que afirmara que a exposição intitulada ‘Queer museu – Cartografias da diferença na América Latina’, estava ancorada no princípio da diversidade e no respeito à livre expressão artística, o que se conclui no breve texto é que a perversão, a pedofilia e a zoofilia são novamente colocadas no mesmo balaio e, o que é mais grave, como comportamentos inerentes ou inescapáveis à população LGBT.

A exposição buscava, por meios artísticos, colocar em destaque e abrir um debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, como afirmou a própria instituição bancária que a abrigava, mas uma parcela da população, insuflada por movimentos nitidamente conservadores e grupos ‘ditos’ evangélicos, mas que comungam na verdade com a ideologia da ultra direita, insurgiu-se violentamente contra a exposição e contra o seu conteúdo que objetivava destacar questões relativas à sexualidade e à religiosidade na contemporaneidade. Com a curadoria de Gaudêncio Fidelis, a Queermuseu era composta por mais de 270 obras que percorrem o período histórico de meados do século XX até os dias de hoje. A iniciativa explora a diversidade de expressão de gênero e a diferença na arte e na cultura.

Claro que a polêmica não ficou apenas no plano das argumentações e contra argumentações, pois alguns grupos passaram a frequentar a exposição ou ‘dar plantões’ na porta da exposição com cartazes que alertavam que os artistas estariam fazendo a apologia à degradação humana, às orgias, ao lesbianismo, à zoofilia, à pedofilia, além de difundir blasfêmias e ofensas sérias à fé cristã. Porém, as coisas não ficaram apenas na manifestação de ideias, pois esses grupos conservadores passaram rapidamente para ofensas e xingamentos ao público que visitava a exposição e, mais assustador ainda, chegaram a cometer agressões físicas contra as pessoas que tentassem fazer qualquer tipo de ponderação.

Dias depois, na internet, vários textos de representantes destes grupos, além de vídeos, alertavam para o ‘mal’ propagado pela ‘ideologia ou teoria de gênero’, chamada de ‘teoria Queer’, que partiria das maçãs podres da população, os ‘adoradores do diabo’, agindo como a serpente no Éden.

Como é de conhecimento geral, a exposição foi fechada, não sem um pedido de desculpas da instituição bancária que, obviamente, cuidou apenas e tão somente de preservar o seu lugar ao sol em uma sociedade na qual a intolerância e o ódio passaram a ser vistos como ‘naturais’. Era preciso exorcizar os demônios, expulsar o estrangeiro, eliminar as diferenças.

Cerca de duas semanas depois, um grupo de vinte pessoas capitaneado ironicamente por um ator de filmes pornográficos, foi para a porta do Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Ibirapuera, vociferar e agredir, nos mesmos moldes, as pessoas que ali circulavam e onde acontecia uma performance na qual um artista permanecia deitado nu sobre um tablado. Havia aviso de nudez na entrada da sala e o conteúdo não era erótico. Em um dado momento, uma criança acompanhada da mãe, tocou os pés e a canela do homem, o que gerou intensa ‘indignação’ nos manifestantes. Desta vez, o tumulto foi maior e bem mais agressivo, passando os manifestantes a xingarem o público em geral de pedófilos, depravados e coisas piores. Os cartazes do grupo traziam dizeres como: ‘pedofilia é crime sim’ e ‘estão erotizando nossos filhos’. Outros protestos se seguiram, sempre sob o som do hino nacional, em clima ufanista, e os manifestantes ensandecidos pediam: ‘prendam os criminosos’.

Por que tanta violência e tanto ódio? Por que a aversão a expressões da cultura e da arte que colocam em xeque a visão dominante sobre a sexualidade humana e a religião? Por que grupos de natureza política se colocam como arautos da moralidade e da ordem e gritam por intervenções policialescas e militares? Estes grupos agem violentamente e clamam por mais violência para defender seus nebulosos territórios. Estamos diante certamente do fascismo e do eixo central que o sustenta, o fanatismo. Fascismo e fanatismo à brasileira, desvelando uma enorme fenda aberta em uma sociedade, na qual os sujeitos vagam em profundo desamparo. As mediações começam a desaparecer, estamos vivendo em um universo primário, quase barbárie.

Nas sociedades fascistas, como nos adverte Amós Oz, instala-se uma guerra que passa a ser travada entre grupos fanáticos, convencidos que seus fins ‘santificam’ os meios. O fanatismo é muito mais antigo do que o Islã, o cristianismo e o judaísmo: ‘ele é mais antigo do que toda a ideologia que existe no mundo, seria um fundamento fixo na natureza dos seres humanos. ’ (Amós Oz. “Caro fanático” In: Mais de uma luz. São Paulo: Companhia das Letras, 2017).

Oz adverte que quanto mais difíceis e complexas se tornam as questões da humanidade, tanto mais cresce a avidez por respostas simples, respostas de uma única sentença, respostas que apontem sem hesitação os culpados por todos os nossos sofrimentos, respostas que nos assegurem de que, uma vez que eliminemos e exterminemos os malvados, imediatamente todos os nossos tormentos desaparecerão. A culpa, então, é sempre do outro, do estrangeiro, do diferente, daquilo que, se nos habita, não queremos de modo algum ter notícias.

O que se pode verificar nas situações acima é um tipo de manifestação que se ancora em pensamentos arcaicos: ‘Não venham me esfregar na cara a sinistralidade que me habita, denunciar meu mundo de desejos silenciados, minha sexualidade sempre tão subversiva’. Sobretudo, ‘não venham me aterrorizar com o fantasma que me aterroriza desde a origem, o desamparo, e ‘não coloquem em questão meus dogmas mais fundamentalistas, Deus e o dinheiro’.

Seguindo um pouco mais o pensamento de Oz, ele conta de um curioso transtorno psíquico, cuja denominação médica é “síndrome de Jerusalém”: as pessoas respiram o ar da montanha ‘límpido como o vinho’ e imediatamente se levantam e vão atear fogo numa mesquita ou explodir uma igreja ou profanar uma sinagoga, matar hereges e crentes, varrer o mal do mundo. Em geral, porém, os portadores desta síndrome se contentam em despir suas roupas, escalar uma rocha e começar a profetizar. O problema é que talvez só uns poucos acreditem nesses profetizadores, mas apesar disso, eles são muitos, de todos os matizes do arco-íris.

Nesse sentido, importante marcar que o fanatismo é sempre fascista, justamente pela avidez exacerbada por soluções simples e contundentes, pela salvação ‘de um só golpe’. O tributo a Hitler, a Stalin, ao militarismo japonês cruel e violento parece já ter retornado. A vacinação parcial que a humanidade recebeu depois do horror do holocausto e das politicas stalinistas de extermínio, denuncia Oz, está se esgotando: “ódio, fanatismo, aversão ao outro e ao diferente, brutalidade revolucionária, o fervor em ‘esmagar definitivamente todos os malvados mediante um banho de sangue’, tudo isso está ressurgindo”.

A bem da verdade, e concordo com Oz, é preciso dizer que existem tipos menos evidentes de fanatismos, mas eles estão à nossa volta: ‘de antitabagistas fanáticos aos chamados pacifistas que divergem violentamente de quem vislumbra caminhos diferentes para a paz.’ Contudo, nem todo aquele que defende sua concepções aguçadas e rígidas a plena voz deverá ser acusado de tender ao fanatismo. Diz Oz: “não é o volume de sua voz que o definirá como um fanático, mas principalmente sua tolerância ou a falta dela com as vozes discordantes”.

Conformismo, caminhada cega por um rumo preestabelecido, obediência sem pensar e sem objetar, a tão disseminada ânsia de pertencer a um grupo humano compacto e sólido, esses também são componentes da alma do fanático. Não há sociedade fascista sem a sua sustentação por indivíduos fanáticos. Fascismo e fanatismo se alimentam mutuamente. O fanático necessita de um líder fascista (ou religioso) para seguir vivendo dentro de um sistema que se assenta na naturalização simplista das condições de existência, aparentemente protegido de seu desamparo. E o líder fascista (ou religioso) necessita da multidão de fanáticos para defendê-lo e propagar suas ideias/crenças.

Propagação do medo, exacerbação do terror e das angústias, horror ao desamparo e busca desenfreada de inclusão e pertencimento social são pilares de sustentação do sistema capitalista neoliberal, que espalha sua hegemonia pelo mundo à custa da infantilização das massas. O fanático não tolera diferenças entre as pessoas, aspira ardentemente mudar o outro, abrir seus olhos. Desde sempre e para sempre, prossegue Oz, o fanático corre para agarrar o outro pelo pescoço para redimi-lo, porque gosta dele. É uma espécie de ódio violento, justificado pelo amor ao outro, para ajudá-lo a alcançar sua redenção.

O motivo pelo qual o fanático está muito mais interessado no outro do que nele próprio é que geralmente não tem nenhum “próprio”, ou quase nenhum. O fanático vive alienado de seus desejos próprios, de suas angústias e de seus horrores. Ele combate basicamente os hereges e os ‘pervertidos’. ‘Não me venham desvelar meus desejos incontrolados, não me venham aterrorizar com o desamparo inerente e inescapável’.

Vivemos tempos sombrios e essa frase já se tornou um clichê. Não é difícil compreender, assim, porque a psicanálise não se converteu em um anacronismo, mais de um século depois de sua invenção. O homem ainda segue buscando escapar de sua negatividade e destrutividade, de sua sinistralidade, do estranhamento inominável que experimenta diante de sua face mais obscura, ao mesmo tempo familiar; segue recusando os impulsos sexuais sempre desviantes e subversivos, não amoldáveis mansamente pela moral sexual vigente. A ideologia que sustenta a sociedade capitalista neoliberal, funcionando sob uma democracia falseada - democracia é um estado de constante exceção, nos ensina Benjamim –, ameaça a todos de expulsão, exclusão e desamparo, e a qualquer um, que pela diferença, diversidade ou questionamento profundo, se coloque como elemento de instabilidade da ordem social. Tradição, família e propriedade seguem sendo os pilares a sustentar um sistema profundamente injusto e desigual.

Finalizo, perguntando: o que será do MASP e sua próxima exposição “Histórias da Sexualidade”? Como se sabe, a exposição que estava no Guggenheim em Nova York não escapou da censura e recriminações violentas, levando o museu a retirar três das obras mais polêmicas entre as setenta que integram a exposição. Boatos sobre curadores terem sido ameaçados de morte e também de promessas de retaliação econômica contra o museu passaram a circular. Em São Paulo, o MASP, que tem essa exposição na agenda há quase três anos, se vê obrigado a tomar medidas preventivas contra a violência e a intolerância.

O fascismo está em marcha. É preciso que denunciemos a plena voz. O desafio será encontrar caminhos para que as diferenças e divergências voltem a conviver e a dialogar. Como?


Maria Silvia Bolguese é psicanalista, membro e professora do curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, e colunista do Blog do Departamento. É autora dos livros “Depressão & doença nervosa” (Via Lettera, 2004) e “O tempo e os medos. A parábola das estátuas pensantes” (Blucher, 2017) 

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