Amor e Morte nos Tempos do Corona
Nosso colega Daniel Modós nos conduz a uma viagem pelo realismo fantástico de
Gabriel Garcia Márquez para pensar a atualidade.
Amor e Morte nos Tempos do Corona
Na abertura de Amor nos Tempos do Cólera, Gabo nos avisa no primeiro capítulo,
não, antes, no título mesmo, que a sua não é tanto uma narrativa do Amor
invencível contra todas adversidades como é uma história sobre o amor em um
tempo, na marcha do tempo, inexorável, com a ainda mais inexorável morte sua
companheira e, por fim, aliada. Se
engana quem busca a eternização do amor concretizada pela paixão de meio século
entre os dois personagens principais Florentino Ariza e Fermina Daza: a
história do amor superando a morte é tema, mas não é a solução no livro. Sim, a
paixão adolescente de Florentino resiste cinquenta anos, atravessa a incerteza,
a rejeição e o casamento da amada com outro, perdura pela virada do séc. XIX e
sobrevive, é claro, ao cólera que
assolava a região, assim como à guerra civil, e à cruel desigualdade social
legada pelo colonialismo espanhol, porém, exatamente aí, no tempo, nas cinco
décadas que acompanhamos Florentino Ariza e Fermina Daza percebemos que eles
são avatares desses dois grandes desastres inevitáveis: Amor e Morte que são nossos
gêmeos personagens principais.
“Os sintomas do amor são os mesmos do
cólera” lembra o ancião revelando a Florentino Ariza este parentesco esquecido
que o pobre vai descobrir cedo demais quando Fermina o rechaça. É que o amor de
Gabo não é eterno: como nós ele é mortal, acaba, decaí e se transforma. Eros,
como a gente, adoece, se modifica e envelhece, embora como nós também não deseje
ver seu próprio fim chegar. Na paixão de Florentino é o Amor por Fermina que aferrado
a si próprio vive como se não fosse morrer, como se seu apaixonamento fosse
durar incólume por toda a eternidade, assim como seu objeto amado. A lei de
Eros sem Thanatos é mesmo querer se perpetuar, evitar seu próprio fim a imitar
a tumba do Taj Mahal, um monumento de si próprio onde apodrece eternamente a
ideia da pessoa amada.
Nos falta amor nos tempos do
coronavírus? Não, certamente não nos falta desse amor auto-apaixonado que
ignora o fim afim de se conservar. As tumbas em sua homenagem estão por todas as
partes, na Avenida Paulista marcham seus arautos em verde e amarelo carregando
caixões para lembrar que a morte para eles não passa de uma piada engraçada. Esses
senhores (surpreendentemente) amam: se amam demais e amam demais o líder com
quem se identificaram, se amam demais para ver na esquina a derrocada política
de seu chefe ou para conceber como possível a derrocada adoecida de seus corpos
pelo Corona. Como nas guerras civis de Márquez, o Brasil do nosso atual fantástico
realismo também vive confrontos políticos, também vive uma praga, também vive o
peso brutal da exacerbação da desigualdade mantida pelo amor especular dos corretamente
autodenominados conservadores, que
cultuam o cadáver em picles de uma sociedade repressora que, por sorte, já não
existe mais. São os “espelhismos” (espejismos) que Márquez relembra sempre
quando fala do amor, exemplificados com maestria quando Florentino coloca em
sua casa o espelho colonial do restaurante onde vira Fermina Daza se refletir
por apenas uma noite na qual ela nem se atentara para a presença do amante a
espiona-la. Esses monumentos de um amor ensimesmado, que em nome de sua continuidade
teima em tentar persistir idêntico e eterno mesmo quando já fermenta e se
transforma em carcaça, nos lembram o poder da ilusão especular onde Narciso se
fixa e morre imobilizado em estado de graça. Dessa perspectiva o amor ao idêntico, puro e simples, o amor do eterno
sem o novo – sem diferença – é só uma morte mais lenta, a morte na catatonia
imóvel de quem não quer perder a imagem eterna de si, ou do outro (que
importa?), num espelho caríssimo do período colonial (quem quer conservar o
Brasil colonial?).
Próximo à morte, aos setenta, Florentino
pôde por fim descobrir que o amor púbere que nutrira como sagrado durante
décadas já não tinha lugar, que ele mesmo já não tinha 17 anos e que, se era
para o amor florescer ainda, teria de ser um novo amor com um já idoso
Florentino e uma idosa Fermina Daza. Só na morte do amor narcísico especular pôde
nascer um amor menos febril, mais maduro, vindo das cinzas do antigo e só essa
novidade pôde por fim iluminar o crepúsculo dos anos dos nossos heróis
combalidos pela idade. Nos tempos do Cólera o amor que se permitiu mudar, que
encarou a peste, a morte e o tempo de frente pôde ter chance de se deixar
morrer para renascer modificado. Nos tempos do Corona em todo seu terrível o
vírus nos força também a ter de encarar a Morte. Quem sabe, se não a ignorarmos
como realidade incontornável com todos os sofrimentos que causa, se como
sociedade não nos fixarmos nesse espelho colonial desviando uma vez mais os
olhos dos desastres diários, se largarmos um negacionismo auto-apaixonado,
talvez possamos finalmente transformar esse país colonial que insiste em não
mudar.
Daniel
Modós é psicólogo graduado pela PUC-SP, formado no curso
psicopatologia contemporânea e clínica psicanalítica (Sedes Sapientiae), membro
do Coletivo Filomena de Psicanálise.
Texto inspirador... parabéns ao autor Daniel Modós.
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