Estalos


No Blog  hoje o texto/poema de Sergio Telles.


Estalos
Sérgio Telles


Na madrugada, a madeira estala dizendo coisas que tento adivinhar.   

Estaria saudosa da árvore que foi um dia - as raízes cavando laboriosas no duro e denso fundo da terra, as folhas lá em cima balançando ao vento leve, as nuvens, a luz do sol, a chuva, o voo dos pássaros? Lembraria o suplício da serra elétrica esquartejando sua carne, dos pregos nela cravados? Protestaria contra a prisão perpétua a que está condenada sem ter cometido crime algum, para sempre transformada em portas, janelas, gavetas, cômodas, guarda-roupas? Temeria os cupins que a corroem por dentro, transformando-a lentamente em pó?

Antes os estalos eram maldosos e se compraziam em aterrorizar o indefeso menino insinuando que a escuridão do quarto estava prenhe de horrendas assombrações do outro mundo, inquietas almas penadas que vagavam pelo mundo em busca do postergado repouso.

Sergio Telles é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e autor dos livros O psicanalista vai ao cinema volumes I, II e III, entre outros.   

Comentários

  1. Desejo parabenizar a Equipe do Blog pela escolha deste texto/poema de Sergio Telles, que tenta adivinhar o sentido dos estalos da madeira, assim como tentamos a cada dia, adivinhar o sentido das assombrações, das inquietas almas penadas, assim como os protestos contra tantos sentimentos de injustiça. Trabalho muitas vezes aterrador outras vezes inútil, mas que faz parte de nossa lide quotidiana.

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