A tela como portal
Como
trabalha um psicanalista com crianças durante a pandemia? A seguir, Daniela Danesi nos fala de sua
experiência na construção e fazer clínico do setting de atendimento remoto com
crianças neste período.
A
TELA COMO PORTAL
Inspirada
pelo texto de Mira Wanjtal (https://deptodepsicanalise.blogspot.com/2020/06/pandemia-pandemonio-pensando-os-novos.html),
publicado em 29 de junho de 2020 nesse Blog, que escrevo aqui, como uma espécie
de conversa, quase um diálogo, a partir das ressonâncias dessa leitura e do que
experiencio com as crianças que acompanho em análise.
Em
meados de março, como a maioria de meus colegas, decidi passar todos os meus
atendimentos de analisantes jovens e adultos para o modo on-line devido à
Pandemia que já se apresentava em nosso país.
Ingenuamente
me apeguei ao significante quarentena, imaginando que por volta de maio
retornaria aos atendimentos presenciais e decidi ligar para as crianças,
conversar uma a uma sobre esse período de interrupção dos nossos encontros e a
possível volta assim que a Pandemia arrefecesse. Naquele momento julguei que
era o melhor a fazer até que uma delas me disse: “nós estamos conversando por
telefone, não é? Está dando certo, não é? Poderíamos conversar na semana que
vem também? Porque eu tenho tanto medo!”.
Eis
que me dei conta que havia decidido por elas sem ao menos tentar montar algum
tipo de dispositivo on-line que nos permitisse prosseguir com as sessões. Sua
fala direta abriu uma aposta de que sim, seria possível continuar a escutá-las e
encontrar formas de me comunicar e brincar sem a presença dos corpos no mesmo
espaço, e em muitos casos continuando a usar o corpo para que conseguíssemos
brincar juntos, mesmo à distância.
Dei,
então, uma guinada de cento e oitenta graus e iniciei conversas com os pais
para afinarmos como poderiam ajudar a montar um ambiente tanto físico, em
termos de privacidade, quanto virtual em termos do dispositivo que usaríamos
para nos encontrar.
Nem
todos apostaram no trabalho de análise neste novo formato. Alguns decidiram, como eu também havia feito,
que seria muito difícil para o filho aguentar mais uma tela pois prestar
atenção à aula on-line já estava sendo um esforço. E que esforço!!!
Pais
e filhos viram repentinamente sua vida rotineira ser desmontada e precisaram
encontrar caminhos para uma convivência intensa atravessada por múltiplas tarefas,
estando debaixo do mesmo teto (nos casos em que manter a quarentena foi
possível), juntos e separados ao mesmo tempo.
Dentre
esses fui recebendo mensagens de uma mãe que inicialmente quis interromper os atendimentos.
Nestas mensagens dizia-me que o filho estava impossível, que ela não aguentava
mais, que eram brigas quotidianas e, após entender que ele estava pedindo um
espaço de escuta, nos surpreendemos pelo imediatismo com que esta criança
passou a brincar comigo através da tela, comunicando que precisava da minha
ajuda para combater a Estrela da Morte! Juntei com durex um canivete e um
apontador e assim com a minha espaçonave pude compor com a dele uma pequena
frota que navegaria por esse universo de angústia procurando formas de ligar a
excitação e transformar pura intensidade em ligação e vida.
Sim,
Mira, você tem toda a razão! Precisamos patologizar menos as crianças e apostar
nesta incrível capacidade que elas têm de brincar. E nos deixarmos contaminar
por isso, resgatando a criança que um dia fomos pois conforme me disse uma
analisanda: “Isto que está nos acontecendo, esta Pandemia misturada com a
difícil situação política em que nos encontramos, não são para principiantes!”.
Quero
lembrar aqui das palavras de Freud em seu texto Escritores criativos e seus devaneios (1908): “A ocupação favorita
e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer
que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um
mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de um nova forma
que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério;
ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita
emoção. A antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real.”
Através
da tela compartilhada pelo dispositivo Zoom uma criança me apresenta a banda
que gosta muito para em seguida mostrar a coreografia que aprendeu. Está toda
arrumada, cabelo impecável, desejaria muito ter um blog e ser famosa, mas
queixa-se de que seus pais não a deixariam. Ao mesmo tempo está cercada por suas bonecas e
bichinhos de pelúcia em uma travessia que tanto a fascina quanto a assusta
muito. Mostra-me em seu quarto, com os seus objetos, a continuidade das
questões que trabalhávamos em suas sessões presenciais.
Outra
criança segura o celular através do qual está conectada-desconectada comigo,
sem olhar para mim, sem ao menos falar, chutando uma bola de basquete contra a
parede ao lado da qual tem um grande espelho. Balanço para cima e para baixo,
no ritmo de seus chutes, vou ficando mareada e preocupada dessa bola bater no
espelho e esse se espatifar em cima dela. Pergunto se já andou de barquinho no
meio de um mar revolto na tentativa de que perceba minimamente que “estou ali”
observando o que está fazendo e buscando algum tipo de contato ao narrar o que
estou sentindo. Quando lhe pergunto onde
está, finalmente presta atenção em mim e me pergunta onde eu estou. Várias
vezes ao estar com esta criança me perguntava por onde andavam os seus adultos
significativos, tão distraídos dela... Digo-lhe que estou na minha casa e volto
a conversar com ela sobre o que nos levou a não podermos mais nos encontrar no
consultório. Pede, então, para conhecer alguém que mora comigo. Digo que vou
lhe apresentar a minha cachorrinha e desta vez sou eu a me movimentar
procurando Frida. Surpreendo-me, depois de muitos encontros de pura agitação e
“mar revolto”, com o fato dela parar para conversar comigo e com Frida.
Digo-lhe que ela e eu estamos atentos a ela, muito interessadas em conversar e
saber como está e o que gostaria de nos contar.
Esta
criança que se apresentava como puro movimento, tanto no consultório como em
muitos de nossos encontros virtuais, terminou o semestre propondo que
passássemos a usar a mesma plataforma
que ela usava para se conectar com as aulas da escola às quais, segundo relatos exasperados dos
pais, não conseguia prestar atenção. Iniciou
comigo um jogo virtual chamado Roblox em que se cria um avatar e com ele pode-se
entrar em muitos joguinhos. Escolhemos, entre tantos, um joguinho de parkour,
em que nossos avatares tinham que pular pistas de obstáculos. Começamos a jogar
e ela habilmente foi me deixando para trás já que eu repetidas vezes me
movimentava de um jeito errado e caia no abismo. Para surpresa minha, ela parou e ao perceber isso, me
disse: “espera, vou voltar e aí seguimos juntos, pulamos juntos e eu vou te
ensinando”. E assim fizemos, à distância, mas no mesmo espaço virtual, no mesmo
ritmo, juntos, ela me ensinando com prazer e eu aprendendo com prazer!
Foi
com imenso prazer, também, que assisti no dia 14 de julho à live com Radmila Zygouris organizada pelo CEP cujo
tema foi A Escuta Psicanalítica hoje: A
Criança-Mundo. Ela partiu da ideia de que há sempre uma criança por traz
dos conceitos fundamentais da psicanálise, porém não se trata da mesma criança
dependendo da época. Desenvolve, então, três paradigmas que não se sucedem, mas
coexistem representando eixos de escuta na clínica:
-
a criança freudiana: a criança-sexo, com os seus conflitos girando ao redor do
Édipo
-
a criança-História/trauma, a partir de Lacan, que pensou o Inconsciente como
transindividual, ligando-o à linguagem e ao Outro. Este novo paradigma permitiu
a abertura da escuta, nas análises, do encontro da pequena história com a
Grande História.
-
a criança-mundo: novo paradigma que surge a partir da importância da tela e do
mundo numérico (do 0 e do 1), na contemporaneidade. Aponta que é preciso ainda entender
a possibilidade de fragmentação que isso gera, tanto da experiência de si como
do mundo. Segundo ela haveria, então, uma mudança na posição do analista no
sentido de restabelecer laços humanos e dar consistência ao território de vida.
Termino
o texto com mais um diálogo, desta vez imaginário, com Radmila. Sua fala generosa,
espontânea, carregada de humor e de uma visão da análise em que pensamento e
afeto estão sempre entrelaçados construindo laço e vida foi muito inspiradora e
permitiu-me nomear, com mais clareza, algo do que acredito ser importante a ser
considerado em todo processo analítico.
Radmila
chama a atenção para as consequências da tela estar presente, hoje em dia,
muito precocemente na vida das crianças fazendo com que elas estejam em muitos
lugares ao mesmo tempo sem estar em lugar nenhum, experienciando identificações
muito diversas mas ao desligar o aparato eletrônico nada sobra, podendo gerar
um sentimento de apatia que pode ser rapidamente convertido em uma violência
sem objeto. Aponta que por estar em contato com o não-vivo a máquina não lhe
responde, não há outro. Neste sentido fala da importância do lugar do analista
como aquele que precisa reestabelecer laços humanos, que certamente são mais
limitados que uma máquina, dando lugar à presença real.
Gostaria
de contar aqui que o desafio de acompanhar as crianças nesse período de
Pandemia está sendo enorme, reconheço o cansaço que ela aponta mas também pude
constatar que as crianças muito me ensinaram a partir de sua criatividade e
dessa maravilhosa capacidade de brincar e, assim, inventar uma vida possível
para si.
As
crianças-mundo ainda brincam, e muitas nesta pandemia puderam usar a tela como
o armário de C. S. Lewis me convidando a brincar com elas em Nárnia.
Daniela Danesi é
psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae e professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
Bonito texto Dani. Descobertas criativas neste espaço plano que pode ganhar muitas dimensões.
ResponderExcluirbjos