Pandemia & Pandemônio - Pensando os novos desafios das crianças, ou com crianças


Leia a seguir o texto de Mira Wanjtal que traz importantes reflexões sobre as mudanças no funcionamento das famílias e seus filhos durante a pandemia.

PANDEMIA & PANDEMÔNIO
PENSANDO OS NOVOS DESAFIOS DAS CRIANÇAS, OU COM CRIANÇAS
Mira Wajntal

Parte I - Dos pandemônios do século para as crianças
Hoje em dia, quando se aborda o tema da infância, costuma-se falar de sua potencialidade de adoecimento, dos destinos patológicos de tudo que lhe pode acontecer. Longe de ignorar todas as faces e destinos da privação e do traumático, não deveríamos valorizar o potencial de criatividade e transformação da criança? A infância se tornou o berço, por excelência, da psicopatologia, tudo que se aborda em torno dela diz a respeito de uma prevenção, de um ideal de futuro. Algo diferente pode ser construído?

Suspeito que esta tendência em ver o infantil pelo viés da patologia vem da ideia de que uma escola de psicanálise se constitui, como narra Mezan (2014), em “O tronco e os ramos”, a partir de quatro pilares: primeiro, uma teoria geral da psique, composta de uma tópica, uma dinâmica e uma economia psíquica. Segundo, uma teoria da gênese do desenvolvimento psíquico. Como consequência destas duas, em terceiro lugar, uma teoria do funcionamento normal e patológico da psique e, por fim, em função destas três, há uma concepção do processo analítico. Desta forma, discutir o desenvolvimento e a psicopatologia, discutir o desenvolvimento da psicopatologia fazem parte do nosso ofício.

Porém, creio que isto não deva ser traduzido em olhar tudo pelo viés psicopatológico, principalmente quando pensamos em crianças. Entraves, paralisias ou dificuldades no desenvolvimento não devem ser traduzidos como tal. Para nosso alento, parece que Freud (carta a Fliess de 25/05/1895) debate-se com esta questão ao referir-se à psicologia como um tirano que, como um dos tormentos, seria “extrair da psicopatologia tudo que possa ser útil para a psicologia normal”.

Ou seja, e aqui arrisco dizer, a clínica nos defronta, desde sua origem, com este dilema, construir um normal a partir da patologia. Mas a clínica com crianças não pode obedecer a tal lógica, pois estamos diante dos processos de constituição do psíquico. Acredito ser interessante apostar que os processos estão em andamento e, portanto, temos como grande aliada uma plasticidade, não apenas apoiada na maturação neurológica, como nos próprios movimentos do acontecer psíquico.

Estes aspectos elencados acima também nos provocam a discutir a complicada questão da ação preventiva. O termo prevenção nem sempre é fácil para nós psicanalistas, pois não há como predizer como uma história de origem se faz futuro determinado. Ainda dialogando com Mezan, as diferentes maneiras de organizar a subjetividade dialogam com sucessivas “escolhas” dos momentos cruciais do desenvolvimento. Lembraria que estas escolhas podem ser tanto contingenciais, inconscientes ou de presumida consciência. Não menos importante, será a presença do cuidador, que como nos ilustra Spitz (1965), tem o potencial de ativar ou não o desenvolvimento da criança.

Concluo, então, neste breve sobrevoo, que a nossa potência clínica se faz quando podemos abrir novas possibilidades de escolhas para uma família sobre dificuldades que poderão se concretizar ou não no futuro, diante dos sinais que um bebê ou uma criança podem estar sofrendo.

Parte II - Da pandemia
Dentre os grandes desafios de estar em casa, cuidar dos filhos se tornou uma grande pauta, que pode ser abordada tanto do ponto de vista dos adultos, como das crianças, sem se esquecer que há lares em situações muito diferentes: há famílias que se encontram no confinamento domiciliar com seus filhos, mas há quem precise sair, quer para conseguir se manter, pois, infelizmente, se pararem de trabalhar ficam sem seu sustento; quer porque estão envolvidos em serviços essenciais, como saúde e alimentação, e são obrigados a sair.

Mas, gostaria de abordar uma questão que, ao meu entender, dialoga com os aspectos levantados acima. A maioria dos que têm filhos está muito habituada a terceirizar uma boa parte dos cuidados deles através de parcerias com escolas, familiares ou cuidadores. Agora, a família só conta com seu núcleo de moradia. A transformação mais crucial nesta pandemia foi o fato que a transmissão cultural, a educação e os cuidados, subitamente, passaram a ser encargo exclusivo da família nuclear. Vínhamos de um cenário com um forte apelo a um modo de vida em que os pais, quer por ficar pouco tempo com os filhos, quer por aderirem a uma ideia de serem muito diferentes dos próprios pais, ou pela máxima do século XXI, onde o valor social é dado pelo consumo - consumo logo existo - as relações afetivas passam a se traduzir em quantidades de objetos presenteados aos filhos, ou possuídos por eles - transformou a identidade parental em apenas desfrutar de bons momentos com seus rebentos. Até então, parecia que ser bons pais equivalia a não dar limite, não frustrar - tudo poder desfrutar - quando pais e filhos estavam juntos. Os familiares querem é desfrutar com os filhos! Educar e dar limite virou coisa do passado.

Esta pandemia, subitamente, subverteu tudo isto. E como nos velhos tempos do século XIX e XX, a família nuclear será o grande regulador de rotina, regras e transmissão. Muitos pais entram em crise por ter dificuldade nesta gestão. Por se verem convocados a uma função que, embora lhes coubesse, estavam se eximindo dela. Nós, analistas de crianças e famílias, assim como as escolas, estamos sendo convocados a debater com eles tais questões.

Entendo que estes dois raciocínios potencializam nosso trabalho, abrem caminhos para se pensar as perspectivas deste século, desatam e facilitam um desfecho para quem trabalha, dando respostas a essa “nova realidade”.

Mira Wajntal é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em Psicologia Clínica PUC-SP.

Referências Bibliográficas
BERNARDINO, Leda Mariza Fischer; KUPFER, Maria Cristina Machado. A criança como mestre do gozo da família atual: desdobramentos da "pesquisa de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil". Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza, v. 8, n. 3, p. 661-680, set.  2008.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482008000300005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 26 jun.  2020.

FREUD, S - 1887 - 1902 [1950] Los Origenes del Psicoanalisis - carta a Fliess de 25/05/1895. in: Obras Completas de Freud, Madrid, Editora Biblioteca Nueva, 4a edição, 1981. P 3516.

MEZAN, R - O tronco e os ramos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SPITZ, René (1965) Primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 1998

Comentários

  1. Mira, também achei muito bacana sua reflexão. Fiquei com vontade de te pedir uma segunda sobre os jovens, pois nesse período os pais já se encontram em uma outra posição, mas também aparecem muitas questões.

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    1. Obrigada Lúcia. Realmente os jovens estão em uma dinâmica diferente. Entra em jogo sua autonomia em lidar com a vida.

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