Caminhos de uma comunidade psicanalítica
"Quando o absurdo e o caos nos atravessam, temos
que nos ocupar deles. Não há lugar seguro, uma outra cena ou um pedaço de oásis
a que se recolher. Não há, nesse momento, um suposto saber que nos diferencie e
nos encastele."
Thiago Majolo tece seu texto conclamando os cidadãos
psicanalistas. Confiram!
CAMINHOS DE UMA COMUNIDADE
PSICANALÍTICA
Sabiam agora
que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes,
essa qualquer coisa é a ternura humana.
Albert Camus. A
peste
Há
45 anos, exatamente em 1975, as bases para o Curso de Psicoterapia de Base
Analítica dava corpo a uma ideia que, no decorrer dos anos, estruturou a ética
teórica e clínica do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae. Essa
ideia, que na época Madre Cristina compartilhou com Regina Schnaiderman e
Roberto Azevedo, propunha uma alternativa à Sociedade Brasileira de Psicanálise
na formação de psicanalistas. No berço de seu nascimento, era uma ideia que
recuperava uma convocatória que Freud fizera em 1919, no seu artigo “Caminhos
da psicoterapia psicanalítica”, ao escrever que chegaria um tempo em que o
tratamento do sofrimento psíquico seria um direito de todos, e não um
privilégio de poucos. Para que isso ocorresse, a sociedade brasileira da década
de 70, vivendo sob o martelo terrível da ditadura, carecia de uma escuta
implicada no social, na política, nas manifestações populares, e longe do
sacerdócio asséptico de um suposto saber distante da realidade efervescente.
Hoje,
45 anos passados, estamos aqui reunidos à distância, por esse e outros canais
digitais, diante de uma realidade não menos dura e assustadora, enfrentando uma
pandemia triste e um governo perverso. Temos usado esse espaço do blog, como
membros irmãos de um mesmo Departamento, para compartilhar desafios e dores. E
é justo que assim o façamos, pois a cada um de nós cabe seus próprios
sofrimentos, e esse é um espaço fraterno de trocas.
Mas
não nos esqueçamos de onde estamos, daqueles que nos precederam e para quais
consagramos nosso desejo de pertencimento ao Departamento de Psicanálise. Essa
ideia, que atravessa quase meio século, nos une ainda agora como membros de uma
mesma comunidade, dedicada a ampliar as fronteiras da escuta psicanalítica nas
suas dimensões teórica e clínica. E é certo de que nesse momento temos todos
nós capacidade de fazer muito mais e melhor do que apenas prosseguir no
atendimento aos analisandos sob a égide de uma aparente normalidade absente.
Como psicanalistas e cidadãos, temos todos recursos materiais e simbólicos para
enfrentar com coragem e decência o absurdo do vírus e a perversidade do
autoritarismo, a começar pela maneira com que nos relacionamos com nossos
atendidos e a posição em que nos colocamos nos encontros com eles.
Durante
a peste de Marselha, no século XVIII, o bispo Belzunte, já no fim da epidemia,
acreditando ter feito tudo o que podia para sua população, de quem era uma
espécie de ídolo, trancou-se em sua casa murada, repleta de víveres necessários
para a sobrevivência, esperando resistir ao fim da epidemia. A população, em
revolta, passou a entulhar cadáveres à sua porta e, para garantir que ele se
infectasse, atirou corpos para dentro dos muros de sua casa.
O
conhecimento psicanalítico atravessará os longos fios de fibra ótica e as ondas
dos satélites, sustentará os atos analíticos no socorro às vítimas e aos mais
ou menos vulneráveis, estará irmanado na conversa horizontal entre analistas e
analisandos sobre a mesma realidade que os toca, sem muros que os separem. E,
com muito engenho e arte, ao sair do outro lado, estará transformada. Apenas
transformada ela poderá seguir sendo ainda útil e relevante.
Não
consagrarei este ou qualquer espaço como obra acabada. Assim, o esforço dos que
me precederam não terá sido em vão. Dedicarei, com a esperança de companhia de
meus membros irmãos, uma busca que vai para muito além do tempo que me cabe
viver, na construção de uma psicanálise jamais servil a uma doutrina, nem mesmo
à própria, mas constituída por uma prática clínica a serviço do povo.
Thiago Majolo
é psicanalista e mestre
em História Social pela USP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto
Sedes Sapientiae e membro da Comissão de Debates da Revista Percurso.
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