Bolsonaro e o mal


Seguindo ainda as pistas de Nuno Ramos em seu recente artigo publicado na Ilustrissima, Rafael Pinto Morais analisa o mal em Bolsonaro em conversa com Bataille e Freud. Confiram: 

Bolsonaro e o mal
Rafael Pinto Morais*

Os que guardam alguma decência sabem que duas desgraças assolam o Brasil, o bolsonarismo e a disseminação do coronavírus. Felizmente, não faltam reflexões sérias que dotam de sentidos nossa experiência tão conturbada e nos convocam a algum engajamento.

O artigo de Nuno Ramos publicado no dia 03 de maio no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo, está entre os textos mais interessantes com que me deparei nos últimos tempos. Nuno é um artista competente e escreve como monta uma de suas peças. O texto justapõe noções que convergem para um argumento central e, ainda assim, abrem espaço para as próprias construções do leitor. Entre quem escreve e quem lê está estabelecido um jogo que, se bem jogado, potencializa a obra. Aqui aceito o desafio proposto e me permito algumas reflexões.  

Em certo momento de Brasil enfrenta duplo apocalipse com Bolsonaro e coronavírus, Nuno Ramos sobrepõe as duas tragédias a partir da constatação de que não há nada de construtivo em Bolsonaro, o que o move é o puro ímpeto de destruição. Deseja o poder e cada vez mais poder para promover agressão, sofrimento, dor e morte. O artista reconhece, e com razão, esse impulso em muitas falas e ações dessa figura execrável e seu séquito. Cita, por exemplo, os projetos que visam ao puro desmonte de tudo aquilo que políticas de Estado consolidaram de Itamar a Dilma: alguma proteção aos excluídos, o SUS, a universalização do ensino, a estabilização da moeda, o Bolsa Família, o acesso de etnias minoritárias ao ensino superior, a potencialização do Sistema S, a demarcação de terras indígenas. Não se trata apenas de uma guinada ultraliberal, que por si só comporta uma boa dose de violência. É preciso reconhecer que a agressividade de Bolsonaro muitas vezes impossibilita até mesmo as estratégias para a implementação dessa agenda.  

Posso ainda validar a tese do autor elencando outros fatos.  Em tempo de pandemia, Bolsonaro é incapaz de criar agendas, organizar planos, inventar saídas; por isso, repete cegamente o mantra negacionista da volta ao trabalho. É o desespero de quem se vê pressionado a lidar com a contingência lançando mão de alguma habilidade criativa, mas não possui recurso algum. E assim milhares morrem. Se ainda muitos outros morrerem, e daí? Quem se faz arauto da própria morte não pode tomá-la com estranha perplexidade.

Tampouco Bolsonaro quer restaurar ou conservar alguma ordem: seu próprio ministro da economia é um homem cujo receituário promoveu um sistema que fracassa em outras partes do mundo. Ainda, o que da ditadura a besta exalta é a tortura e seus carrascos, o cheiro fétido dos porões onde se exerciam brutais assassinatos. No campo da linguagem, comanda um escritório sedento de escombros, que busca a todo custo destruir a lógica, as verdades historicamente aceitas, os significados consolidados que posicionam as coisas no mundo, os sentidos que sugerem algum projeto de futuro.

Inúmeras são as evidências a partir das quais se pode afirmar que Bolsonaro é incapaz de qualquer coisa que não seja o próprio mal. Mas não nos enganemos. Bolsonaro não é a incorporação ou atualização de uma entidade maligna. Tal coisa não existe; só aparece em demasia no imaginário do cinema americano e no da fé neopentecostal que, aliás, ele mesmo advoga. Vale lembrar que, muito antes de qualquer consideração acerca da banalidade do mal, Platão e Agostinho já o posicionavam no campo da vida terrena. O mal não recebeu de nenhum deles qualquer estatuto ontológico: aquele fez questão de vinculá-lo à vida sensível longe do mundo inteligível das formas em que reina o bem, à busca pela satisfação dos desejos insensatos, das paixões desmedidas; este salvaguardou Deus e colocou as tendências destrutivas humanas na conta do livre-arbítrio e do mau uso que se faz dele.

Leitor atento de Freud, Georges Bataille interessou-se pela pulsão de morte e fez desse conceito o ponto central a partir do qual desdobrou suas reflexões a respeito da natureza humana, suas práticas e formas de coletividade. Em obras como O erotismo e A parte maldita, encontramos a noção freudiana segundo a qual a vida comporta uma força que constantemente opera a disjunção, clama pelo dispêndio, e luta pelo retorno ao inanimado. Todas as formas de puro aniquilamento buscam satisfazer a essa força inexorável e dar vazão à carga de excitação que dela advém.

É justamente aqui que devemos situar o bolsonarismo. Bolsonaro age por essa energia e faz de tudo para esgarçar os laços sociais de modo a permitir que ela emerja. Cruéis, ressentidos e covardes encontram, enfim, seu tão aguardado protetor. Já podem insultar, caluniar, mentir, agredir e matar sem qualquer constrangimento. Acredito não haver nada melhor para representar o projeto bolsonarista do que o semblante de Regina Duarte, em cujo sorriso está estampado o signo do macabro e da doce leveza do horror.  

Seguindo ainda as pistas que Freud deixa a partir da publicação de Mais-além do princípio do prazer, Bataille  afirma que a vida só se sustenta quando construímos interdições que nos afastam da pulsão de morte sem deixar, contudo, de inventar formas de transgressão para que possamos ser admitido parcialmente ao mundo do prazer. Os seres humanos vivem esta contradição: impomos barreiras para manter a morte afastada, porém jamais nos fechamos nessa recusa. Aos movimentos de infração e perda, que desconcertam e nos conduzem ao limite do prazer possível, Bataille dá o nome de erotismo. As manifestações artísticas, as festas, os banquetes, o orgasmo na orgia ou no casamento, a atividade sexual perversa, a religiosidade não afetada pela lógica da acumulação, os jogos, os espetáculos, tudo isso é manifestação erótica.

Discordo daqueles que acreditam que Bolsonaro condena o erotismo porque guarda em si profundos desejos enrustidos que não ousa concretizar. O erotismo o incomoda tanto porque impõe limites humanos para a bestialidade, porque carrega uma potência criativa para o prazer que a mera animalidade desconhece.

Em A estrutura psicológica do fascismo, o que Bataille nos ensina é que não basta simplesmente apostar na democracia e em sua constituição formal para afastarmos figuras como Bolsonaro. O próprio ambiente democrático por si não impede que o heterogêneo seja canalizado na figura de um líder vulgar, o qual, por sua vez, fará de tudo para extinguir a sensibilidade capaz de censurar o mal. São formas de vida mais dignas, poéticas, plásticas e lúdicas que mantêm trancados os portões do inferno, e o fazem deixando passar a quantidade de calor de que precisamos para que nos aquecer. Hoje, enquanto resistimos, devemos levar isso em conta para compreender o Brasil da ascensão de Bolsonaro.   

Volto agora ao artigo primoroso de Nuno Ramos, segundo o qual os milhares de mortos no Brasil ao longo dos últimos anos, vítimas da violência e do descaso, “se cansaram de nós, ligaram o foda-se e entronizaram seu próprio carrasco”. Nuno Ramos, porém, sabe que agora precisamos justamente do auxílio dos mortos, de cada pai e mãe ceifada pelo vírus mortal, de cada índio abatido pelo garimpeiro invasor, de cada menino negro caído com uma bala na cabecinha. É deles que vem uma verdade da qual nunca se escapa: banalizada, fazendo-se presente assim sem mais nem menos, sem qualquer cerimônia e à luz do cotidiano mais prosaico, a morte carrega consigo nossa própria humanidade.

Rafael Pinto Morais é aluno do curso Conflito e Sintoma, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É formado em Filosofia pela USP e em Letras pela PUC-SP, onde também obteve o título de Mestre em Ciências Sociais.

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