Sobre vida e morte em tempos de pandemia
No afã do
crescimento e do progresso, reencontramos ruídos de nossos primórdios na
arcaica linguagem biológica do vírus... E descobrimo-nos frágeis como espécie.
Nosso colega Alcimar Alves de Souza Lima, professor do Curso de Psicanálise
do Departamento, convida-nos a pensar sobre tal condição.
SOBRE VIDA E MORTE EM TEMPOS DE
PANDEMIA
Vivemos hoje
em um momento sinistro. Uma pandemia surgiu inesperadamente em nossos
horizontes e como consequência um isolamento entre os homens pulsou e ainda
está pulsando, deixando marcas indeléveis em nosso cotidiano e em nosso porvir.
Isso é
contrário à vida, pois essa se caracteriza por forças que estão sempre em
contínua e rítmica movimentação, mas, no momento o isolamento social é a grande
arma que temos para evitar que a saúde pública entre em colapso.
A pandemia
nos trouxe esta contradição.
A natureza
profunda da condição humana é a união dos gametas com todos os seus
desdobramentos para fazer acontecer o ser humano.
Neste ponto
nodal começa toda a aventura humana.
Da concepção
ao nascimento, alguns desdobramentos ocorrem. Destas etapas o devir humano se
põe em marcha. Estas primevas auto-organizações deixarão marcas no ser humano.
Neste momento
um paradoxo se produziu, pois marcas nos dão a ideia de fixidez e o que quero
expressar aqui é que estas marcas em perene movimento carreiam heranças
ancestrais. Portanto, a condição humana já contém a linguagem da natureza antes
mesmo que a linguagem da cultura fosse capturada.
Esta estranha
captura da linguagem cultural é feita quando o ser humano começa a falar com
palavras. Porém, a natureza já possuía uma linguagem mais arcaica: a linguagem do
código genético.
Quando se
fala em zigoto, este nos traz o novo e a ancestralidade. Esta linguagem que é veiculada
(biológica) se junta a outra linguagem e neste movimento aparecerá a cultura.
Nossa
linguagem cultural é herdeira dessa outra muito mais arcaica que pulsa na
natureza.
A linguagem
do DNA que, contém quatro moléculas forma o seu “abecedário”. Adenina,
citosina, guanina e timina são moléculas que escrevem um livro biológico, que
contam histórias orgânicas de tempos imemoriais. Este livro tem um ponto de
inflexão com aparecimento do ser humano.
Assim sendo
esta linguagem que provém da natureza, e que é composta por moléculas
“abecedários”, produzirá embriões, que, em um determinado tempo produzirá um ser
humano. Cada criança que nascer terá o seu genoma, conjunto de seu código
genético sempre diferente uma da outra. Cada criança é um novo livro que a natureza
produzirá. Um livro de natureza genética e um livro que será escrito através de
sua imersão na cultura.
O
“abecedário” molecular sofre um grande desdobramento em algum momento da
história e este ACONTECIMENTO propiciará as condições para que a humanidade
comece a pulsar no seio da vida. Uma mutação deve ter acontecido e deste
“abecedário” molecular pulsa um desdobramento e surge um abecedário de letras
que comporão sílabas, palavras parágrafos, páginas e livros. Livros estes com
histórias e narrativas que constituirão nossa cultura.
O homem traz
uma história ancestral molecular através de uma linguagem biológica-química e, também,
uma história composta de palavras e parágrafos. A história da vida humana
contém esta dupla articulação. Surge a linguagem humana propriamente dita. Isso
foi possível em algum momento histórico. Hoje, este desdobramento fica
encoberto pelas neblinas dos tempos.
Dobras e
desdobramentos virão. Cabe ao homem ter a sabedoria de lidar com eles. Perigos
existem, pandemias provindas de vírus primitivos com grandes potências
destrutivas sempre serão uma ameaça para a nossa espécie. Os humanos com sua
linguagem cultural possuem a capacidade de criar medicações e vacinas para
superar com dificuldades as adversidades.
Não poderemos
esquecer que os vírus são o início do “abecedário” biológico. Hoje, eles
aparecem como ruídos destes primórdios. O homem explorando a natureza de forma
intensa e desenfreada, sem ética e criando imensas desigualdades sociais
permite que estes ruídos desta arcaica linguagem biológica, os vírus, apareçam
e produzam avassaladores estragos na vida de muitos. Os mais bem dotados,
imunologicamente falando, produzem anticorpos e conseguem combater o vírus por
si mesmos, articulando as duas formas de linguagens e desta forma as epidemias
passam, mas os danos que produzem são muitos, tanto para a saúde física quanto
para a mental.
O preocupante
é que a espécie humana, que possui pulsões de vida e de morte, lida mal com
estas potências que possui. Nossa espécie maltrata o planeta que é vivo e
necessita de cuidados para que a vida possa nele vicejar. O que o homem ainda
não percebeu é que sua espécie é frágil.
Estamos
percebendo com esta pandemia, em que o recolhimento mundial de grande parte das
populações se tornou necessário, tivemos como efeito a diminuição da poluição no
mundo.
Tudo isto nos
aponta para um mundo cada vez mais incerto e cabe a nós apostarmos que estes
milhões de anos vividos pela humanidade e os bilhões de anos vividos pelos
vírus possam ganhar melhores equilíbrios e isso garantiria novos desdobramentos
para a vida no planeta.
Alcimar Alves de Souza Lima é psiquiatra e psicanalista.
Professor do Curso de Psicanálise do Instituto SEDES Sapientiae- São Paulo.
Alcimar, que bom ler esse seu texto!!! Fiquei encantada mais uma vez com sua escrita "tão poética" para falar agora de uma realidade "tão crua" como a que estamos todos vivendo em todos os continentes do Planeta. Sempre me lembro dos seus ensinamentos compartilhados em meu tempo do Curso de Psicanálise porque um conceito (?) que você sempre nos falava, o tempo do ENTRE - aquilo que éramos e que já não somos mais => a travessia/tempo do entre => aquilo que seremos mas que ainda não somos! Esse tempo do Entre pode ser um gerador de angústias né? E agora numa dimensão mundial estamos nesse tempo do ENTRE do nosso planeta... se por um lado me angustio, por outro lado me gera tranquilidade pensar que nossos jovens de todo o planeta estão começando a entender que teremos que fazer diferente!
ResponderExcluirBom, não vou me estender mais além de lhe dizer que adorei ler mais um texto seu!!! Merci, Elô
Obrigado , Elo , pela dedicada leitura!
ExcluirLinda manifestação poética em prol da vida, que segue o seu curso inteligente, ainda que resistamos em aceitar e a deixar fluir, o que é equilibrado em prol da sanidade da humanidade e sustentabilidade do planeta. Parabéns Alcimar por esse belo ensaio.
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirExcelente reflexão, Alcimar! Obrigada por trazer sempre uma boa palavra!
ResponderExcluirObrigado, Helena!
ExcluirQue texto intenso! Amei a síntese desdobrada entre as inscrições da linguagem genética e biológica e da linguagem humana. Faz lembrar o paradoxo de Winnicott:no bebe é um ser humano e um bebe é algo que não existe. Necessita do outro e da cultura para se desdobrar. Como enfatiza Spielrein não há linguagem sem o outro. Belo pensamento criativo seu como um dos guias para a era da incerteza e das catástrofes ecológicas e virais que temos pela frente. Freud e Ferenczi conversaram sobre as catástrofes da história humana e da natureza em plena primeira guerra mundial. Parabéns!
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