A trincheira e um sonho


A força das palavras revelam a força do impacto do estado de pandemia, da política e da morte. Confiram a seguir o texto “A trincheira e o sonho” de nossa colega do departamento Maria Elisa Pessoa Labaki.


A TRINCHEIRA E UM SONHO
Maria Elisa Pessoa Labaki

1. Trincheira
Se insisto em receber as provisões do sensível é porque posso me recolher junto à trincheira, em cujo fundo atapetado descanso um pouco e vou ao encontro de respostas. Observo, tiro fotos, faço distinções e grito nomes, cores, formas para me distrair da agonia do tiro que me atingiu e quase me arruinou, mas do qual consegui escapar pelas beiradas do furo que me deformou. Vigio as fronteiras da dor, que corre abundante por entre afluentes e atinge impiedosa o flanco onde está o buraco hiperinvestido pelo estrago. Forço, tento consumar o devir inédito, assim como a criança que deturpa a ordem olha pela abertura da fechadura, por onde se alcança a parte daquilo do qual se foi excluído, e vê os corpos entrelaçados. O real choca e quebra a casca explodindo em cascata.

É por sua vocação em oscilar que a gangorra do humor regula seus fluídos e escoadouros buscando acertar prazer na dor. O prazer conserta a dor.

Suportar o cálculo cotidiano de números de mortos e doentes alvos do diminuto ser funciona como uma espécie de exercício de adaptação aos impactos, acompanhado do fortalecimento gradual de músculos, ossos e ligamentos. Uma forma de munição para estancar seu poder exponencial e reduzi-lo à miserável condição existencial do que é apenas contingente, provisório. (Ainda que o transitório ou o súbito nada tenham da miséria, mas sejam belos exatamente por sua especial submissão ao instante.) Alçá-lo a um reduto de si, reduzi-lo a um resto morto o bastante para imunizar o entendimento contra a desrazão. Ex-poderá-lo pela fragmentação. Mesmo que a tritura aumente em extensão sua superfície, potencializando a capacidade penetrante do Mal animal, vou me valer do princípio da degradação, que rebaixa o grau quando se perde a unidade anterior, original.

O mapa das ocultações. Na escala numérica, sob a escalada do ódio e nas escadas rumo ao abate, sou uma vaca ferida a mais neste rebanho dócil e obediente. Na fila, me posiciono por último para receber a porção mais variada da ração dos condenados que sobrou escondida, decantada, no fundo da panela. A sopa é sempre muito ralinha para os primeiros, mas grossa e consistente para aqueles que a recebem por último. É isto um homem? [1]

2. Sonho
Houve uma festa para onde retornei para dizer que havia sido uma boa festa. Era a casa de um primo. E neste dia, quando lá voltei, estava começando outra festa, já com algumas pessoas chegando. Na sala havia uma grande tela de cinema que era a televisão da casa, onde eram projetadas duas imagens em formato oval de televisão antiga, uma ao lado da outra, transmitindo em branco e preto meio azulado um jornal diário de notícias. A televisão tela de cinema da casa era transparente, feita de um material feito seda ou tule esticado, mas firme e avantajado. Nesta sala, que era de estar, mas podia ser a sala de existir, as cadeiras estavam dispostas em sucessão, uma ao lado da outra. Cadeiras de madeira de auditório de escola ou poltronas de um teatro antigo.

Dou um pulo no banheiro, que se apresenta fétido e com merda espalhada, endurecida e seca entranhada por todas as louças enfileiradas. Louças brancas como as que se distribuem em um banheiro escolar ou de algum teatro. Merda espirrada e grudada desde a festa passada. Um documento selado, lavrado, lacrado, certidão de óbito. Aqui jaz uma festa. Com tudo que tem de direito. E avesso.

Na sala de existir, as pessoas sentadas se manifestavam oralmente, falando, falando, falando. Ordenadamente, cada uma na sua vez, sem combinação prévia quanto à organização ou à ordem, tampouco inscrição. A palavra fluía. A parceira do meu primo, segurando uns papeizinhos na mão, ia confirmando a contribuição em dinheiro de cada um lá presente. Em inglês, ela dizia: with you for ever. Frase irônica que eu tinha lido no dia anterior em um post que havia recebido com a capa de uma revista italiana de 1962, Domenica del Corriere, cuja imagem mostrava pessoas encapsuladas de pé dentro de pequeninos automóveis com capotas abauladas feitas de vidro inteiramente transparente, ilustrando uma matéria sobre o mundo em 2022. Tudo single, individual.

Então, na nova festa a palavra seguia seu curso, ritmada e parecendo conduzida por um metrônomo, submetida a um pragmatismo generoso que concedia facilidade de emissão, para aquele que a evocava, e penetrabilidade pela introjeção nos destinatários que por ela sentiam-se provocados. Faladas aos borbotões, as palavras iam se transformando em um monte, nuvem densa, um pão em fermentação e uma engrenagem trabalhando sem parar. Ágora. Estávamos nós ali ocupando a sala de estar pública. Democracia reiterada, validada. E quando, num sobressalto, tive esse pensamento sobre a democracia lá em exercício, percebi que éramos todos parte da arte de montar do meu primo. Era uma intervenção, como outras que produzem universos paralelos e homólogos aos da natureza, mas que não são naturais porque nascem de uma inflexão imposta pelo artista que subverte e reorganiza, acrescentando um outro mecanismo e um outro destino, desconhecidos.

Nesse ponto do sonho, pensei ter entendido o sentido desta festa por sua necessidade – Ananké – de servir como resposta, e assim ficarmos lá falando, falando e falando. Estávamos em uma festa combinada previamente e com finalidade diferente da diversão que entretém. Havia nos convidados uma devoção para com o ato de se manifestar que, todavia, e apesar de sua orquestração, não perdia em espontaneidade e, ágil, ganhava em circulação. Comunidade de semelhantes.

Dei um pulo no banheiro, que agora estava limpo, ainda insípido e inodoro esperando para nascer depois que a festa se anunciasse.

No quintal, dei com um mastro fincado no chão, como um pau-de-sebo, mas podia ser também um totem, ou até uma pinhata, cuja ponta lá no alto espetava um busto marrom e sem cabeça usando roupa de couro; podia ser um jagunço se equilibrando. Alguns da festa cirandavam ao seu redor num movimento centrípeto e cambaleante, que tendia para fora do círculo central, mas sem dispersar. A Lei, um Pai. Eram poucos, tortos e enlutados. Todos nós.

Maria Elisa Pessoa Labaki é psicóloga e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e do Departamento de Psicossomática Psicanalítica, ambos do Instituto Sedes Sapientiae. É professora do curso de Especialização em Psicossomática Psicanalítica.



[1] Primo Levi. É isto um homem? Rio de Janeiro, Rocco, 1997.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon