AÇÕES NA PANDEMIA
Confira a
seguir o texto de nossas colegas do Grupo Faces do Traumático sobre o
atendimento grupal de residentes de medicina na atual situação de pandemia.
AÇÕES NA PANDEMIA
Submersos no imprevisível, no surpreendente, no sobressalto e na
ameaça que coloca em risco a sobrevivência física e psíquica do sujeito, nos
encontramos expostos coletiva e individualmente ao impacto do trauma.
Comprometidos com o estudo deste tema e com uma intervenção que
permita atenuar e processar o sofrimento psíquico e suas possíveis
sequelas, nos propusemos, a partir da sugestão de uma sextanista de Medicina e
de seu depoimento em relação as tensões, angústias e temores que estão vivendo
seus colegas e residentes, oferecer atendimento a eles por meio de um grupo de
apoio.
Embora esperássemos, obviamente, que esta modalidade de
atendimento tivesse um efeito terapêutico, nossa oferta não era estritamente de
grupo psicoterapêutico. Nos propúnhamos oferecer uma escuta mais centrada no
momento atual, uma
presença capaz de
possibilitar a emergência de afetos e o reconhecimento e busca de sentidos para
o que estavam vivendo. Enfim um espaço de compartilhamento rumo
a ligações pulsionais e processos de simbolização que permitissem maior
integração em momentos de fragilidade do eu.
A ideia de trabalhar com residentes nos pareceu auspiciosa. São
jovens profissionais em formação, diretamente vinculados a um dos maiores
dramas que coletivamente estamos vivendo. Residentes que estão em contato
com um número expressivo e crescente de pacientes contaminados e pacientes
mortos; além de conviver com o risco da própria contaminação e morte. Por outro
lado, cuidar de quem cuida, e de quem, a nosso entender, precisaria de
cuidados, vai ao encontro do ideário mais pleno de quem escolhe nossa
profissão.
Como organização para nosso trabalho, optamos pelo atendimento
em grupo, embora também tenhamos ofertado atendimento individual, na ideia de
que, para alguns, o grupo pudesse constituir um obstáculo.
Para surpresa nossa, e apesar do entusiasmo do próprio
coordenador dos residentes e de alguns médicos - além, claro, de nosso
próprio entusiasmo - somente nove residentes, procuraram nosso serviço.
Supomos de que isto pode ter acontecido pelo hermetismo das
defesas, -que tenta isolar e distanciar a cena do trauma-; ou pela necessidade
de evitar uma quebra na autoimagem ideal onipotente, que perderia forças em
contato com o desamparo; ou ainda, porque o psiquismo exige um tempo interno
para suscitar demanda e nossa oferta de atendimento pode ter se antecipado a
esse tempo.
O projeto, apesar disso, foi e segue sendo uma experiência
significativa, suscitando questões e reflexões sobre a natureza da intervenção
em situação que definimos como um potencial estado de trauma coletivo desencadeado
pela pandemia.
O que encontramos no nosso trabalho?
-O Grupo como dispositivo de trabalho se mostrou extremamente
potente. O compartilhamento, se revelou como vacina contra o isolamento das
angústias, dos afetos, dos desafios, dos impasses subjetivos e objetivos,
corroborando a ideia sobre a importância da função testemunhal em momentos de
catástrofe. Reconhecemos tal função em nosso trabalho e também na escuta atenta
e solidária dos participantes quando alguns narravam a insegurança e angústia que sentiam quando
eram deslocados das suas especialidades para o atendimento de pacientes
infectados pelo Covid-19.
- As angústias reais potencializadas por angústias
neuróticas, provenientes do medo da morte: da própria morte e da morte dos
outros, solapadas muitas vezes por uma angústia distinta, mas igualmente
potente: a angústia de contágio, de ser contagiado, ou a ser acusados pelo
contágio, como se fossem
portadores da doença e da morte;
angústias também emanadas do desconhecimento dos médicos-professores frente a
nova doença, que parecia reatualizar a des-ilusão adolescente da imagem
parental infantil com super poderes e saberes Até mesmo os profissionais
reconhecidamente competentes passavam a ser questionados por suas incertezas em
momentos em que o conhecimento, longe de ter certezas, está em construção.
Encontramos também o sentimento de abandono, de desproteção como
fonte da angústia, fantasias de desamparo que, embora ancoradas na realidade,
pareciam emergir de áreas remotas do psiquismo: “não nos dão suficiente
equipamento de segurança, trocam máscara só uma vez por mês. Temos elogios,
batida de palmas. Porém esse excesso vicia e distrai o governo daquilo que
deveria fazer e não faz”.
Frente a todas estas e outras angústias, várias são as defesas
que se implementam: cisões, posturas onipotentes, defesas maníacas,
recusas, negações, projeções, formações reativas. Apesar de perceberem sua fala pouco lógica,
os profissionais se viam muito confiantes, acreditando que não corriam risco de
se contaminar, mas tinham receio de contaminar os familiares ou outras
pessoas com quem tivessem contato. Em suas descrições era possível perceber
que se sentiam muito seguros, ainda que se contaminassem, tudo acabaria bem. No entanto comentavam em seguida sobre um colega que está muito grave e
entubado: “as pessoas estão ajudando, mas ninguém fala sobre a doença, não
querem discutir, preferem ficar blindados morrendo de medo em casa”.
Embora o tempo de atendimento ainda é pouco, podemos perceber um
tecido grupal se constituindo e algumas interessantes mudanças. O médico já não
é depreciativamente quem não sabe, mas quem compartilha com eles de forma
horizontal certas dúvidas; o cuidado de si mesmo está mais presente; o olhar e
a empatia com o paciente ficou mais acentuado.
Muitas perguntas nos fazemos: como trabalhar com as defesas? que
aspectos das falas podem e não podem ser aprofundados neste enquadre? como
lidar com as angústias pretéritas que claramente pegam carona neste momento?
Muito a refletir sobre o peso da realidade e fantasia na condição traumática...
Fica evidente que o trauma não é o fato em si. Mas, ao mesmo
tempo, o peso da realidade não pode ser ignorado. A realidade se impõe em
momentos como este, por sua intensidade, sua ameaça e seu impacto
desorganizador como potencialmente traumático. Dependerá da história de cada
psiquismo e do trabalho que possa ser feito em simultaneidade ou posterioridade
para que esta realidade opere e se instale como trauma ou possa ser integrada
na história.
Novas linhas de trabalho se abrem. Estas ações junto aos
residentes tiveram impacto na Instituição onde foi desenvolvido, e hoje com uma
demanda muito expressiva dos sextanistas, continuamos o trabalho somado àquele
que começamos com os residentes.
Flávia Steuer, Maria
Angelina G. Cabral e Myriam Uchitel são membros do Grupo
de trabalho e pesquisa: Faces do Traumático do Departamento de
Psicanálise do Sedes Sapientiae.
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