Pequena reflexão sobre a clínica na quarentena


Como no dia da marmota apresentado no filme Feitiço do Tempo (1993), para as pessoas que estão em isolamento social os dias tem sido sentidos como uma contínua repetição de mesmos fatos, um cotidiano impedido de descontinuidade. Nossa colega Ana Patitucci tece reflexões sobre a necessidade de enlaçar a repetição cotidiana com movimentos de vida.

PEQUENA REFLEXÃO SOBRE A CLÍNICA NA QUARENTENA

A condição humana é trágica. Freud a descortinou em Além do princípio do prazer, ao identificar e nomear a pulsão de morte, formulá-la como o par antagônico da pulsão de vida e considerá-las a base de nossa existência. Ao longo da história da humanidade, essa condição se tornou explícita principalmente nos períodos onde as tragédias inundaram o cotidiano, tal como nas grandes guerras. Vivemos, agora, algo dessa ordem.  

Nesse ano que se completa o centenário do ensaio que marcou a virada teórico-clínica na obra freudiana, eis que o mundo inteiro se vê frente à ameaça da pandemia do Covid-19 e aos enormes desafios que ela encerra. No Brasil, essa grave situação se tornou ainda pior devido ao duplo flagelo que nos abateu: o político e o surto pandêmico. Ambos carregam a marca indelével da pulsão mortífera, que parece correr solta pelo país.   

Desde então, tenho pensado, com uma sensação constante de urgência, nas maneiras de fortalecimento de nossa conexão com a pulsão de vida, seja no campo privado ou coletivo. Neste último campo, as ações políticas solidárias e de enfrentamento ao Covid-19 que estão sendo organizadas pela sociedade civil se multiplicam, o que é um alento. E, na singularidade de nossos consultórios, os sentimentos que são comuns a toda a sociedade se manifestam: incertezas, medos, angústias, raivas, dúvidas e perdas; mas também esperanças, descobertas e as possibilidades criativas de enfrentamento do isolamento social.   

Sustentar as transferências nesse momento de pandemia torna-se desafiador, a meu ver, por estarmos todos, analistas e pacientes, imersos na mesma situação.  

Dentre as várias questões presentes atualmente na minha clínica, abordo aqui algo que tenho percebido nos últimos dias da quarentena, que segue sem data de término: a importância da descontinuidade em nosso cotidiano. Depois de quase dois meses, tem se intensificado as queixas dos pacientes sobre a sensação de que todos os dias é a mesma coisa, de que nada acontece – embora tenham muitas tarefas, domésticas, com os filhos e com o trabalho –, uma repetição sem fim dos dias, como se estivessem presos em um eterno dia da marmota. Com a impressão de presente contínuo, aumentam as irritações, a ansiedade, o tédio, a insônia, o desânimo.  

A recorrência dessas queixas me evocou a lembrança de uma entrevista do filósofo Emil Cioran, publicada há anos atrás na Folha de São Paulo, na qual ele falava sobre a insônia que o acometeu durante anos seguidos e pela qual se deu conta da angústia que dá a vida contínua: a vida se torna insuportável sem a pausa necessária ou aquilo que a descontinua.

Tal reflexão me levou a pensar na experiência de um presente contínuo e de vigília constante, característicos do período de isolamento social, que embaralha nossa vivência do tempo e nos mergulha numa realidade de uma concretude perigosa, sem horizontes. Além de considerar que essa situação difícil pode ainda se agravar pelas perdas traumáticas que a doença e o isolamento impõem.

Dessa forma, podemos aguçar a escuta para mobilizar os recursos psíquicos que possibilite, cada um a seu modo, encontrar as brechas da descontinuidade no cotidiano repetitivo. Pois a descontinuidade configura aqui a possibilidade de abrir espaço interno para o sonho, a associação, a imaginação, um jeito de ampliar os horizontes. Essa é a condição de criar, de construir narrativas – esse recurso tão precioso de ser acessado em uma análise – sobre o que é vivenciado, com maior ou menor intensidade traumática. Esse me parece, então, um dos modos de fortalecer o laço com a pulsão de vida e tentar evitar que o trágico de nossa condição não se materialize em mais tragédias. 

Que nós, analistas, possamos mobilizar e sustentar em nós e em nossos pacientes os recursos psíquicos e afetivos necessários para a construção dessas narrativas e, então, somar os esforços de enfrentamento desse momento difícil e incerto que estamos atravessando.

Ana Patitucci – Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Integra a equipe de entrevistas da Revista Percurso e o Grupo de Trabalho e Pesquisa em Psicanálise com crianças e adolescentes.

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