Primeiras Palavras numa Manhã Tardia
Hoje no Blog do Departamento tem poesia
do nosso colega Thiago Majolo.
Confiram!
PRIMEIRAS
PALAVRAS NUMA MANHÃ TARDIA
Agora que a luz alaranjada do oriente
tromba no topo dos edifícios e se
esquiva
e o horizonte renova a silhueta da
cidade
voltemos a nos deitar nas horas gastas
com a saudade de um nada manifesto
entre roupas e lençóis largados no chão
e nos poupemos por mais algum tempo
das exigências da grande máquina.
Lá fora a autoridade de mãos sangrentas
reitera a pureza de sua imagem sangrada.
Cá dentro defendemos o sangue guardado
e esqueçamos o lado de lá do acontecimento
pelo acontecer majestoso dos interiores.
Há uma reconciliação a ser feita entre
nós
sempre tão desiguais em cheiros e ideias.
Nos espreguiçaremos nus como no sétimo
dia.
Eu aprendendo no olfato a sua lavanda
você degustando a minha macieira.
A pressa tem nos colonizado por
ponteiros
que rodam a voltar num sem parar tedioso.
Então nos estiquemos no ócio do pó
e na embriaguez das festas acabadas
com cadeiras viradas e copos quebrados.
Não votaremos receio algum à preguiça
nem resistiremos à desobediência aberta
e a entrega inequívoca às coisas
proibidas.
Somos da mesma matéria indócil da
poesia.
Não servimos para nada e a nada servimos
a não ser ao que nos sirva por completo
a todo conhecimento e toda sombra
nesse momento de apaziguamento pleno
e volta àquilo que não devíamos ter
deixado.
Há sempre muito serviço a ser feito
quando não nos fazemos servis aos
serviços.
Minha língua espalmada em seu ventre
é uma descoberta maior que a das Índias.
Aquele desejo que você deixou escapar
carrega agora o meu pensamento inteiro.
Poderíamos viver ao som daquele desejo
nunca antes acomodado no expediente.
Eu também tenho um desejo por contar
e uma mentira maior que o ventre de
Maria
que colocaria no mundo um novo mistério.
Deixa que eu sussurre no seu umbigo
deixe-se estar grávida de um novo
enigma.
Até agora vivemos como chaveiros
abrindo os ferrolhos do mundo
e tendo nas mãos uns espelhos rotos
como se à procura de algo perfeito
por detrás de cada impossibilidade
e de cada manifestação inexplicável.
Tudo que nos restou foi um mundo aberto
por onde sangram os demônios
plantados à nossa imagem.
Nessa manhã tardia eu e você juntos
testaremos a tarefa irracional
de fechar as explicações e tentativas
e vedar os olhos ambiciosos.
Só saberemos do abismo dos corpos
e da misericórdia da nossa pequenez
como se nada entendêssemos
de tudo que já achávamos entendido.
E como se deslizássemos para dentro
da trajetória incansável de nada saber.
Thiago Majolo
é psicanalista e mestre em História Social pela USP, membro do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro da seção Debates da Revista
Percurso.
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