Impasses na clínica da psicose em tempos de ECT


No clima das comemorações do dia da luta Antimanicomial - 18 de maio - o Blog do departamento apresenta um relato sobre uma intervenção feita no CAPS-Unifesp, cuja equipe conta com a participação de nossos colegas do Departamento de Psicanálise do Sedes Christiana Freire e José Atílio Bombana.

Confiram!

Foto de Geya Garcia (B.Manicomio, Caracaras, Venezuela)/ Att CC BY 2.0/ https://www.flickr.com/photos/somos2013/8350933293/


Até parece que estamos nos anos 30.

Poderia parecer uma discussão extemporânea, mas foi recentemente que nos deparamos com a indicação e permanência do ECT numa reunião clínica de equipe, no CAPS-Unifesp em maio de 2014.

Vínhamos tratando um rapaz de vinte anos, encaminhado pela Enfermaria Psiquiátrica, depois de seis meses de tratamento. Durante sua internação, uma situação de agravamento o levou a um quadro catatônico, sendo-lhe indicado o ECT *. Após dois meses, apresentou maior estabilidade, teve alta da Enfermaria e foi encaminhado para dar continuidade ao seu tratamento no CAPS-Unifesp, em regime intensivo, em uma “internação-dia”. Veio acompanhado de sua mãe, e ao ser interpelado apresentava um discurso esfacelado, respondendo de modo especular, ecolálico, indiferenciado, numa concordância total. Havia desaparecido os conteúdos e as atitudes agressivas que poderiam criar em algum momento a possibilidade do não ou de suas repercussões de diferenciação do outro, dos outros. Estava estabilizado, porém esvaziado.

Nosso trabalho era tanto individual, como em grupo e no âmbito familiar, com o objetivo de oferecer novas relações, redirecionando e reconhecendo os circuitos pulsionais. Um trabalho de reencontro de sua história e do sentido do vivido por ele e por sua família, numa direção de abertura aos novos investimentos libidinais. Concomitante a este trabalho havia as intervenções biológicas e os neurolépticos  atípicos, que a partir de certo momento, passou a criar um impasse. Ao mesmo tempo em que fazíamos um trabalho de recuperação do encontro, do espaço vivido, oferecendo a possibilidade novos vínculos e interesses, criando pequenas narrativas dos fragmentos encontrados- tecidos frágeis nestes espaços potenciais - lá ia ele, uma vez por semana à sua sessão de ECT. Presenciávamos o desmantelamento, a desconstrução, a desfusão do que havia sido tecido, através da perda de memória, da vivência da descontinuidade, da experiência do vazio, e da sensação da iminência de morte que ele nos relatava.

O ECT apagava o que se construía nos encontros.

As tentativas de diferenciação do paciente, que sabemos passar necessariamente pela manifestação de sua agressividade, eram consideradas pelo discurso médico conservador como manifestações de sua doença, e como tal deveriam ser eliminadas. De fato, eram manifestações desorganizadas, mas que continham em germe a potencialidade de subjetivação e ao não encontrar um destino possível em um outro que pudesse lhe dar continência e amarrá-las à construção de sentido articulada à sua história, acabavam em um silenciamento mortífero.

Após muitas discussões, reuniões clínicas e embates, optou-se pela suspensão das sessões de ECT e pela continuidade dos trabalhos no CAPS através dos grupos, oficinas, atendimento familiar e manutenção da medicação via oral.

Ao final de um longo período sem o ECT, o paciente não apresentou, como se temia, a piora do quadro. Observou-se, ao contrário, sinais de vitalidade, e um garoto-adolescente que pode solicitar à equipe do Caps  a mudança do regime de seu tratamento, passando do regime de tratamento intensivo para o semi-intensivo, o que possibilitou a construção de novos projetos como o de escrever um livro, e se organizar para ingressar na universidade. Também passou a se posicionar contrariamente a certos desígnios familiares. O restabelecimento do campo pulsional colocou em evidência um rapaz com muitas produções, mas com idéias impossíveis de serem concretizadas, difíceis de serem sustentadas, teorias mirabolantes, pensamentos incongruentes e afetos desmesurados que prevaleciam na totalidade de sua experiência. 

Um novo campo se abria para ser acolhido, modulado e problematizado nos diferentes espaços de interlocução do Caps. A família do paciente, em especial sua mãe, era alvo de suas manifestações agressivas, erráticas e fragmentadas. Diante deste quadro a família passou a questionar a retirada do ECT e a solicitar o aumento da medicação, fato comum na clínica da psicose, quando a resistência da família faz uma aliança iatrogênica com o discurso médico/biológico. As representações advindas de tal discurso apaziguavam a angústia da família num curto prazo, mas paralisavam a construção de um tratamento que incluía a dinâmica libidinal do paciente e de sua história.

No entanto, apesar de sua resistência, a família acabou concordando com a continuidade do tratamento, o que foi decisivo para este paciente. Os conteúdos agressivos que diziam respeito tanto ao paciente quanto à sua família, foram aos poucos encontrando um outro destino que não o silenciamento. Nosso paciente foi-se reestruturando e expressando desejos, mesmo que confusos e destoantes. 

Os riscos seguem fazendo parte do tratamento, os laços refeitos seguem ameaçados pela desfusão mortífera da psicose, e têm que ser continuamente reconstruídos e reafirmados. Ele continua seu difícil trajeto, com as marcas próprias da psicose, mas caminha em direção à construção de uma subjetividade possível.

Construção de subjetividade ou silenciamento?
A luta continua!

*ECT – eletroconvulsoterapia:  Método desenvolvido por Hugo Cerletti utilizado em humanos a partir de 1938.

Antônio Carlos Cintra, Atílio Bombana, Camila Soares, Christiana C. Freire, Jacqueline Santoantonio, Ricardo Paiva, Wilma S.Szwarc são membros da equipe multiprofissional do CAPS-Unifesp

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