A Alegria de me Encontrar
Nosso
colega Douglas Rodrigo Pereira
compartilha com o Blog o belo relato de uma real paciente fictícia durante a
pandemia.
A ALEGRIA DE ME
ENCONTRAR
00h40. “A tela em minhas mãos
escurece meus olhos com tanta luz. Cores mortas e um ensurdecedor excesso de
nada me dão boa noite. Entre o boa noite e o adormecimento, viro e me reviro
por horas em minha cama desconfortável”.
08h20. “Depois de abrir os olhos e me
espreguiçar um tanto, ainda sem me levantar da cama, comunico-me com o mundo. As
vozes que me dizem “bom dia, família” sempre andam em companhia de
coraçõezinhos e mãozinhas de benções. Mas o que gosto mesmo é das mensagens com
bichinhos fofos: com as suas vozes estridentes e irritantes, eles recitam
frases motivacionais retidas da traseira de algum caminhão velho e empoeirado”.
8h35. “Ainda com o rosto inchado de
uma noite mal dormida, daquelas em que percorremos uma maratona no curto
caminho entre a cama e o banheiro, recebo as compras da semana. Conto umas
vinte sacolas verdes espalhadas pelo chão. Nem sei por onde começo a mexer
nisso. Onde será que estão as coisas da geladeira? Talvez seja melhor começar por
elas. O duro é que está tudo misturado, não tenho como saber em quais sacolas
encontro a margarina, as carnes, as verduras e o meu tão desejado pote de sorvete
de creme. Vou ter que ir mexendo em cada uma delas, procurando o que preciso
guardar agora e o que posso deixar nas sacolas por alguns dias. Terei que me
arriscar, não tem jeito. Que pensamento estranho esse que me invade e faz
entristecer ainda mais o meu corpo: “será que esse pacote de feijão contém
apenas o meu alimento favorito? Ou ele pode também se transformar em uma
terrível estadia hospitalar?” Com o corpo ainda mais embebido de tristeza,
arrisco-me nessa batalha contra as compras.
Na primeira sacola, aquela que está mais perto
do fogão, encontro os objetos de limpeza e higiene; a segunda sacola contém
algumas frutas e verduras; a terceira e a quarta guardam os legumes e os temperos.
Encharco tudo o meu álcool gel, que respinga e marca os pisos brancos da
cozinha.
Depois de abrir várias sacolas,
finalmente o encontro. Ele está um pouco amassado e achatado, mas nada que acabe
com a sua gostosura. Sou louca por ele! Como é bom tê-lo em minhas mãos!
Quando menina, numa das várias
cidades do interior do Brasil, daquelas bem menores do que um bairro pequeno de
São Paulo, eu vivia correndo pelas ruas e brincando sem parar em frente de
minha casa. Era amarelinha, queimada e pique-esconde o dia inteirinho; só
entrava em casa para comer e dormir. Nos intervalos dos afazeres domésticos,
minha mãe ficava de olho na criançada brincado. Vez por outra havia briga e
choro, coisa de criança, mas o que prevalecia entre nós era o clima amistoso.
Dona Vera, nossa vizinha mais velha,
às 16h, sempre chamava todo mundo para lanchar. Ela vivia com o seu marido em uma
casa espaçosa, cheia de móveis de madeira e flores cheirosas espalhadas pelos
cômodos. Dona Vera nos servia um cafezinho bem docinho, do que jeito que eu
gosto, com muito bolo de fubá e milho. Depois, quando a meninada já tinha
comido bastante, ela o colocava na mesa e todo mundo salivava. Ela fazia o seu
queijo em um casebre na roça. O queijo de Dona Vera era especial! Sinto o seu
gosto em minha boca, sua textura e o seu sabor de infância bem vivida na
companhia de muitos outros. Alegro-me muito com a memória do cheiro do queijo e
do pratinho vermelhinho usado por Dona Vera para nos servir.
Ainda com o pedaço de queijo fresco
em minhas mãos, revivo outros momentos especiais: os jantares em família, os
encontros amorosos, a minha inesquecível viagem pela França, o sexo com meus
amantes, as montanhas da Canastra de Minas, meus amores perdidos, meus sonhos,
minhas esperanças e minhas tantas ilusões. Ainda com o pedaço de queijo fresco
em minhas mãos, posso sentir o ar preenchendo os meus pulmões de vida. Tenho
vontade de sorrir e chorar ao mesmo tempo. Lembro que o mundo lá fora está
péssimo, mas também lembro que ainda existe um mundo aqui dentro de mim, um
mundo que vive, luta, se amedronta e sofre, mas que é meu em cada pedacinho.
Como é bom ter um sopro de vida que reanima e dá algum sentido para o que não
tem sentido!
Ainda com o pedaço de mim em minhas
mãos, sinto uma imensa alegria de me encontrar. Talvez seja num pequeno pedaço
do mundo, num alimento, ou num objeto qualquer, numa melodia, ou em um texto,
imagem colorida ou cinza, ou no cheiro e no barulhinho da chuva que cai de
madrugada, que nos encontramos com o nosso mundo inteiro”.
Contou-me uma real paciente fictícia.
Douglas Rodrigo Pereira, psicanalista em formação analítica pelo Departamento de Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae, doutorando em Psicologia Experimental no Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e membro pesquisador do
Laboratório de Estudos da Intersubjetividade e da Psicanálise Contemporânea –
LIPSIC (USP/PUC-SP). Desenvolve uma pesquisa sobre a interlocução entre os
pensamentos de Donald Winnicott e Harold Searles.
Lindo. Obrigada por compartilhar. O doce das doces lembranças da nossa vida
ResponderExcluirObrigado pelo comentário,Vitor!
ExcluirForte abraço.