Nem oito nem oitenta
Através
de seu conto Maria Letícia de Oliveira
nos faz mergulhar na alma de sua personagem nestes tempos de pandemia. Confiram!
Nem oito nem oitenta
Comecei a seguir uma página no instagram
para mulheres acima de 40. Dicas de maquiagem para a pele madura, fotos de
roupas num certo atelier, unhas esmaltadas. Acho que até frases de auto ajuda a
página coloca, comemorando dois anos no ar. O que faço ali?
Limpar, tonificar, hidratar e clarear.
Sentia algum conforto em começar um novo ritual. Não, não era possível atribuir
todo aquele horror ao ciclo menstrual. Entrei na internet e escrevi “tensão
pré-menstrual na quarentena”. Uma série de matérias apareceram. Mas não eram
suficientes. Atribuir tudo aquilo ao hormônio era dar muito poder a ele. Mas
essa atribuição do mau humor ao hormônio ficou mais simples na quarentena, eu
acho. Tenho mais tempo pro meu marido agora e não quero me preocupar tentando
explicar a ele que não se trata de hormônios o tempo todo. Afinal, a gente
tinha desistido de fazer a fiv. Resolvemos esperar e deixar a tal da natureza
agir.
Numa dessas idas ao google, meses antes
eu tinha procurado: “ausência de menstruação sem gravidez”. Me lembrei da
primeira vez que isso aconteceu quando cheguei em São Paulo e uma médica me
disse olhando para os exames e para mim, por cima dos óculos: “relaxa”. Isso é
estresse.
Eu fiquei com vergonha de falar da minha
solidão e da minha mania de limpeza. Ela também me disse: “São Paulo é uma
cidade hostil. Se você for hostil com ela vai dar errado”. Eu saí decidida a
gostar das coisas, da cidade. E até achei poesia na embalagem da água
sanitária: Cândida. Pano de chão de saco
no farol.
A mania de blocos e cadernos acentuam o
quanto eu não escrevo. Eles ficam ao redor, mas sempre que uma ideia aparece,
não tem um lápis por perto. Eu queria escrever sobre o saber da mulher que olha
por cima dos óculos.
Pano de chão alvejado, panela aerada,
roupa quarada. Limpar, tonificar, hidratar e clarear. Finalmente o mundo vai
ter que começar a ficar mais limpo. Certa vez, saindo do metrô uma mulher caiu
do meu lado na escada, ajudei a se levantar e perguntei: “se sujou?” Queria
perguntar se ela tinha se machucado, mas foi isso que saiu. Quebrada, mas
limpa. Assim sou eu. Limpa, quarentona
na quarentena, tentando engravidar.
O que me interessa é o que está aqui.
Não quero pensar no alheio ou no externo. Eu amo meu marido, ele vai me dar um
filho. Ele nunca soube dos desperdícios,
dos bebês que perdi. Mas eu não queria quanto quero hoje.
Vou lavar a louça do café da manhã,
chego na janela. Vejo o asfalto. Toda vez que me angustio tento procurar um
asfalto pra ver. Um chão. Um pano de chão.
A página nude que sigo no instagram pede
para eu ser a mudança que eu quero no mundo. Eu já não sei se a página é sobre
a juventude ou a mulher madura. Mas essa é uma mudança que não quero no mundo.
Não me importaria envelhecer se eu tivesse conseguido um filho. Sem filhos, não
vou conseguir saber quantos anos tenho. Do rosa bebê ao nude muita coisa se
passa na vida de uma mulher.
Minha mãe soube que teve 80. Eu
comemorei com ela. Eu não sei se vou comemorar. A mudança que quero no mundo é
não ser somente filha. Mas ainda tem o meu pai.
Na quarentena minha preocupação
aumentou, mas ele não tem celular e a mulher barra tudo. Não consigo falar com
ele. A mulher do meu pai não é minha mãe. Isso me bagunçou muito. Será que por
isso não consigo engravidar?
Além de escrever sobre a mulher que olha
por cima dos óculos eu queria escrever sobre a mulher que não é mãe. Os lápis
fogem de mim.
Meu marido vai me dar um filho. Ele me
mandou uma mensagem mais cedo pedindo uma sopa de jantar.
Na página que sigo as cores estão nas
roupas. Os cabelos, tem permissão para ser cinzas. Rosa bebê, nude e cinza. Eu
vejo o que cai bem e o que não cai para uma mulher da minha idade.
Discordo das manchas no meu rosto, evito
as notícias, ainda acho que vale a pena medir a temperatura para verificar
minha fertilidade. Um bebê cai bem na minha idade?
A mulher do meu pai deixa ele falar. Eu
converso aliviada. Eu não sei quando vou. Falando, eu sinto aquele “se” bem lá
no fundo. A ebulição de “ses”: se vou viajar, se vou engravidar, se vou ver meu
pai de novo, se vou fazer oitenta anos, se vou fazer a sopa.
Limpar, tonificar, hidratar e clarear.
Finalmente cuido de uma superfície que não é o chão.
Meu marido chega e a sopa está pronta,
cerveja gelada, a louça lavada, a roupa quarada.
O silencio nos cabelos cinzas me
indicavam que éramos velhos. Velhos sem netos. Ele fala dos casos de covid 19
aumentando, das pessoas morrendo, e meus pensamentos nudes, me lembravam:
preciso ser a mudança que quero no mundo.
- Vou visitar meu pai.
- É arriscado.
- Preciso ir. Vou
amanhã cedinho. Me leva no aeroporto?
Lavo a louça do café da manhã. Observo
pela janela se o asfalto está seco para decidir o que vestir. Aprendi a
combinar estampas e listras na página nude.
No carro, sinto meu braço pesar. O
cheiro de cândida sobressai ao do perfume, busco incessantemente uma água na
bolsa. Minha respiração fica ofegante, limpo as mãos, arranco a máscara, meu
rosto nude empalidece, me entrega e desfaleço. Acordo e desisto de viajar.
- Não consigo ir. Me leve para casa por favor!
Abro a janela do carro, pego meu celular
e procuro a página @nemoitonemoitenta. Era assim que meus pais se referiam às
coisas mais ou menos. Assim como eu. Mais ou menos. Mas nunca mais ou menos
limpa. Fazia questão de ostentar todos os meus brancos quarados.
Maria
Letícia de Oliveira Reis é psicanalista, feminista, mãe e
mulher. Doutora em Psicologia Clínica pela USP, é autora de “Infância e memória”
(2015) e curadora de “Perché mi piace” (2018)
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