Solidão na aglomeração versus a falta de privacidade no isolamento
Neste texto, Isabel Tatit e Rodrigo Alencar questionam o fato desta quarentena nos fazer pensar
sobre o avesso da experiência de solidão nas aglomerações. Confiram!
Solidão na aglomeração versus a falta de
privacidade no isolamento
Isabel Tatit e Rodrigo Alencar
Hoje em dia há um certo frisson com
espetáculos ditos “interativos”.
Sabemos, no entanto, que a depender do tipo de interação, o espectador pode se
sentir constrangido ou, na melhor das hipóteses, um pouco babaca. Basta resgatar
na memória o insuportável: “bom dia criançadaaa.... vocês não comeram arroz com
feijão hoje? Está fraco... bom dia criançadaaa!”. O show “interativo”
que busca desesperadamente sustentar a fantasia de complementariedade entre
artista e plateia, como se a experiência fosse vivida de ambos os lados da
mesma forma, tende a fracassar. Embora existam belas exceções (os espetáculos
que produzem uma espécie de sentimento oceânico (1), no qual o artista e
público se sentem em comunhão total, como se fossem uma coisa só) a experiência
mais comum nessas ocasiões é de solidão na aglomeração. Das duas partes.
Parece-nos
mais interessante a conexão palco-plateia que produz contemplação ou até mesmo
a participação voluntária do público, mas não sob demanda do artista. Quando
o artista está no palco, compartilha com o público sua voz, seu corpo e suas
invenções, em sua mais profunda solidão. E como são frutíferas as conversas pós-espetáculo
entre os espectadores sobre suas diferentes impressões. A experiência solitária
compartilhada é aquela que viabiliza a produção de algo muito singular no laço
com os outros. Jorge Alemán nomeou lindamente essa noção de “comum”: uma
experiência coletiva diversa daquela descrita em “Psicologia das massas”, na
qual cada um participa em sua singularidade.
Solidão na aglomeração. Presente também
nas experiências educacionais, por isso a importância em diferenciar ensino de
aprendizagem. Como mensurar o que se produziu de comum em uma aula? Como saber se
o aluno acompanha o raciocínio do professor? Se não for uma pedagogia totalitarista,
o comum se instituirá enquanto cada aluno (em seu próprio devaneio) escuta
aquele que ocupa o lugar de professor, mas que também estará em seu devaneio
singular, divagando com palavras diante dos distraídos.
Compor um coletivo, resistindo à
homogeneidade da massa, é conseguir sustentar sua cota de solidão. É resistir
mesmo, diante da força totalitária de muitos grupos. Frases como “precisamos
alinhar o discurso”, “só vai funcionar se falarmos a mesma língua” e “I think
we’re all on the same page” são respostas angustiadas à possibilidade de
separação, dispersão e autonomia. Esse tipo de mecanismo, sempre comporta certa
medida de perigo, visto que quem diz que temos que “falar a mesma língua”
costuma ser quem quer impor sua língua aos outros sem que mais ninguém invente
palavras. Daí podemos compreender um componente fundamental da solidão como
experiência: há nela um potencial de liberdade e invenção.
A quarentena nos fez pensar sobre o
avesso dessa experiência de solidão nas aglomerações. O confinamento costuma
colocar limites severos no cotidiano e, muitas vezes, exigirá do sujeito um
árduo trabalho psíquico para que tal experiência seja vivida ou encarada com
alguma leveza. A psicanálise se presta a cuidar do sofrimento subjetivo sem
tamponá-lo, sem minimizá-lo, apostando que possa haver um caminho por meio do
citado potencial de liberdade.
Uma das dificuldades do confinamento, no
nível subjetivo, é que em muitas ocasiões não é mais possível ficar só. O
atendimento psicanalítico online tem nos revelado essa dificuldade. Não só a
família (que muitas vezes já participava), mas todo o ambiente doméstico entrou
na cena analítica (cachorro, avô, liquidificador, vizinhos, ligações e mais uma
infinidade de agentes intrusivos). Parte do trabalho analítico, o esforço de
falar sobre intimidades a alguém de quem não se sabe a vida íntima, consiste
justamente em se deslocar do ambiente doméstico.
Não por menos usamos o termo “familiar”
para nos referir a algo que é conhecido. Fazer análise é lidar com o aquilo que
pode parecer estranho e familiar ao mesmo tempo (nas palavras de Freud: Das
Unheimlich). Quem fez ou faz terapia provavelmente já deve ter sido
atendido em uma casa, onde a sala de atendimento se assemelhara a um quarto
aconchegante com abajures, luzes indiretas, mobília confortável e uma pessoa
que recebe de modo afável: a clínica psicanalítica com cara de casinha de vó é
um lugar comum. Além desse tipo de setting ter se tornado uma espécie de
instituição psicoterápica no século XX, ele não é lá muito aleatório.
Seja porque muitos analistas atendiam na
própria casa no início da prática psicanalítica, seja porque algumas linhas
teóricas acharam bom negócio apelar para o ambiente familiar como um auxílio
para que o paciente ficasse à vontade. A língua portuguesa comporta de forma
condensada esse convite a se esparramar ao chegar a um lugar desconhecido:
sinta-se em casa, dizem os anfitriões mais amáveis. Sentir-se em casa é poder
interagir sem se preocupar com o que o outro vai pensar, despir-se da polidez e
dos ritos sociais que recobrem a intimidade.
O trunfo do analista é permitir que o
seu paciente fique à vontade enquanto não se obriga a se portar como alguém
familiar. Ou seja, o analista possibilita que o paciente possa se sentir
sozinho em lugares e momentos inesperados, em relações que antes eram
familiares. Há um deslocamento subjetivo em jogo. E, não tenha dúvida, isso
costuma ser a experiência de uma liberdade radical.
A solidão já foi parte fundamental de um
método terapêutico. David Cooper, psiquiatra sul-africano criador da chamada
antipsiquiatria, interpretou os surtos de psicóticos que disparavam em
caminhadas e encontrados dias depois, em lugares distantes, como uma
necessidade inerente de solidão. Por isso, dizia que um dos piores aspectos dos
hospitais psiquiátricos era a impossibilidade de ficar sozinho. A falta de
privacidade não produz condição de solidão compartilhada dentro de uma margem
de liberdade desejável.
Com quartos, refeições, atividades de
trabalho e lazer coletivos era esperado que em algum momento o paciente
precisasse fugir. Cooper sabia que não poder estar sozinho é enlouquecedor.
Levando isso em conta, idealizou comunidades terapêuticas nas quais os
alojamentos tinham relativa distância uns dos outros, de modo que as casas não
ficassem isoladas, mas que os pacientes também pudessem repelir uma visita
quando indesejada. O psiquiatra da antipsiquiatria dizia que desse modo “se
mantém inviolada a solidão enriquecedora enquanto pode-se viver a comunidade
que permite que as pessoas entrem em contato”.
Se antes da pandemia, poder se retirar
do ambiente doméstico para fazer análise era parte importante do processo, em
tempos de confinamento, poder conquistar a privacidade para poder falar à
vontade, estabelecendo um lugar solitário, íntimo e inviolável dentro do
território familiar é praticamente começar a análise por onde ela termina. Um trabalho
hercúleo, ou seria antiedípico?
Isabel Tatit é psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela USP (“A noção de singularidade na psicanálise lacaniana: aspectos teóricos, clínicos e políticos”) e mestre em Psicologia Social pela PUC-SP (“Do discurso de isolamento a uma experiência de solidão”).
Rodrigo Alencar é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pelo IP-USP, professor convidado na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e autor do livro "A fome da alma: psicanálise, drogas e pulsão na modernidade".
(1) Freud (1930) utiliza a noção de Romain Rolland “sentimento oceânico” para descrever o sentimento do Eu por uma vinculação indissolúvel, em comunhão com todo o mundo exterior. Diz respeito à fase primitiva e desamparada do ser humano. Na vida adulta ganha outros contornos, tais como o enamoramento, a identificação a um líder ou o comportamento religioso; todos esses fenômenos seriam resquícios, ou ainda estados nostálgicos do momento cuja delimitação entre o mundo interno e externo não estava bem definida, ou ainda que a fronteira entre o Eu e o objeto era difusa.
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