Os besouros
Hoje o Blog
apresenta uma crônica escrita pelo nosso colega Sergio Telles.
OS BESOUROS
Sergio
Telles
No jardim da casa de meus avós havia uns
besouros grandes, esféricos, brilhantes, verdadeiros bólidos voadores pretos, daqueles
que a gente pensa como um bicho desse pode voar tendo formas tão distantes daquelas
consideradas apropriadas para tanto, as tais formas aerodinâmicas. Eles voavam
tão vagarosamente que dava para ver suas asas girando, produzindo um zumbido
característico, contínuo, monocórdio. Não eram como as moscas, sempre tão alertas,
que a qualquer mínimo movimento nosso voam tão rápido que mal vemos suas asas se
moverem. Esses gordos besouros, não. Em seu voo cego, não fugiam de nós. Pelo
contrário, muitas vezes voavam diretamente em nossa direção, mas não com
objetivo bélico, como as vespas que deliberadamente nos atacavam, fazendo-nos
alvo de suas ferroadas. Os besouros voavam lenta e desajeitadamente, como se
não soubessem para onde ir, que direção tomar e, desastrados, atarantados, terminavam
quase trombando conosco.
Os grandes besouros estavam sempre por
ali e eram motivo de horror e excitação, um perigo que inevitavelmente apareceria
e teríamos de arrostar quando menos se esperava. Ficávamos com medo de que eles
nos machucassem de alguma forma, nos picassem, nos furassem os olhos, ou
entrassem em nossas bocas, nos buracos dos ouvidos ou do nariz, apesar de
sabermos que isso não aconteceria, não seria possível pois seu tamanho inviabilizaria qualquer tentativa nesse sentido e que a
destemida proximidade que eles estabeleciam com nossos corpos se devia mais a
seu atabalhoamento do que a qualquer maligna intensão invasiva.
Sempre me pareceu inexplicável a
excessiva severidade do jardim da casa de meus avós, sua austeridade, sua disposição geométrica
imutável, o verde exclusivo presente na grama, nas muitas folhagens e palmeiras,
a completa ausência de flores, tudo tão
diferente dos demais jardins da vizinhança, que tinham canteiros de margaridinhas,
sorriso-de-maria, eu-e-tu, rosas (essas eram delicadas e muito difícil de
cultivar no jardim, pelo calor, pela necessidade de muita agua, o jardineiro me
disse), boa-noite e outras florinhas humildes cujo nome esqueci ou nunca soube.
Imaginava que os besouros gostavam mais dos jardins com flores, voavam de
passagem pelo nosso em direção aos outros, certamente mais coloridos e
perfumados.
Vez por outra matávamos um besourão
daqueles. Mas era algo que não me agradava ou deixasse orgulhoso. O besouro parecia tão magnifico, tão senhor de
si, tão seguro de sua grandeza e imponência, parecia sentir-se invulnerável. Talvez
mesmo os passarinhos os deixassem em paz, não teriam como matá-lo facilmente, e
para comê-lo teriam demasiado trabalho para romper a carapaça e fracioná-lo. Era
algo ignominioso vê-lo abatido no chão, lutando para não morrer, pois ele não
entregava os pontos assim sem mais. Abatido no voo por algumas folhas dobradas
de um jornal velho que levávamos para o jardim com esse objetivo, ele caia no
chão e logo se recompunha, procurando alçar voo de novo. Era quando se fazia
necessário que fosse esmagado por um de nós, o que era feito com uma pedra, pois
ninguém queria sujar o sapato ou a alpargata com aquela asquerosa substância
que explodia quando o duro invólucro de seu corpo era rompido. E ali ficava ele,
rachado, em meio a sua gosma, ainda movimentando uma outra perna até parar. Saíamos
então de perto, vagamente cabisbaixos, talvez envergonhados, sem saber bem por
que tínhamos feito aquilo. Afinal, o besouro não nos ameaçava de fato, não
custava deixá-lo viver. O prazer momentâneo de abatê-lo se esvaia rápido, vê-lo
imóvel e estraçalhado talvez nos envergonhasse, sem que tivéssemos claramente a
percepção disso. De qualquer forma, a brincadeira perdia a graça. É como se
esperássemos que o besouro se recompusesse e saísse voando, criando uma nova
oportunidade para ser caçado e abatido de novo, indefinidamente. Mas a morte
era definitiva, o besouro estava morto, nunca mais voaria, para ele o jogo havia
acabado para sempre. A morte do besouro nos fazia compartilhar aquela compreensão
assustadora de que nem tudo era faz-de-conta, de que nem tudo tem volta, as
coisas podem se acabar para sempre, de modo irreversível. Com aquele
besouro, não brincaríamos nunca mais.
Sabíamos que logo mais exércitos de
formigas entrariam em ação e algumas vezes víamos quando elas com grande
empenho levavam a carcaça para suas casas onde a comeriam e, também
gratuitamente, desbaratávamos os batalhões, pisávamos em cima, interrompíamos o
cortejo. Ficávamos atentamente observando como elas dispersavam de suas
formações bem organizadas, filas e filas de formigas, umas indo e outras vindo,
algumas transportando cargas.
Éramos cruéis, implacáveis com essas
pequenas criaturas. Exercíamos poder de vida e de morte sobre elas, copiávamos o
inquestionável poder que os adultos tinham sobre nós, poder que exerciam muitas
vezes de forma arbitrária e louca, o que tanto invejávamos. Queríamos mandar no
mundo da mesma forma, impondo nosso desejo pelo simples prazer de poder fazê-lo,
como um ato de força e voluntarismo, sem ter de prestar contas a ninguém.
Nos jardins também voavam os
passarinhos. Havia muita lavadeira-de-nossa-senhora, um passarinho pequeno, de
penas brancas, com a cabeça e as asas pretas, elegantemente vestido. Eu ficava
muito curioso com seu nome, porque “lavadeira-de-nossa-senhora”? De tanto perguntar terminei encontrando alguém
que me explicou - alguma empregada, uma tia? - é porque elas um dia ajudaram Nossa Senhora a
lavar as roupinhas do Menino Jesus. Eu passei a vê-los com muito respeito e
ficava abismado com meus primos que, armados de baladeiras, sem se preocupar
com o prestigioso trabalho que eles prestavam para a mãe de Deus, tentavam (e
conseguiam) matá-los com caroços de mamona encontrados no quintal. Mas não
quero falar do quintal, pois era outro mundo, muito diferente do jardim. Ali moravam
as vacas, as galinhas, os porcos, ali ficavam os pés de sapoti e de manga,
imensos, os troncos se erguiam retos até muito alto antes de se abrirem em
galhos, nem pensávamos em subir neles Os besouros nunca iam por ali, ou pelo
menos eu não os via. No quintal reinava o Tupi, um velho cachorro, amarrado
numa longa corda que lhe permitia percorrer um espaço razoável.
Sem que nos apercebêssemos, o tempo foi
passando e não mais brincávamos no jardim da casa dos meus avós. Passávamos
voando por ele e íamos nos refestelar nas poltronas, ver televisão e bater papo
com os primos dentro da casa. Mal nos apercebemos quando as duas frondosas
árvores da entrada e as aleias de benjamins podados de forma retangular foram
abatidos, deixando exposta a casa a partir da rua, antes recatadamente
escondida atrás da espessa folhagem. O motivo de tão radical decisão foi que a
casa havia sido assaltada por ladrões que se protegeram da vigilância nas
sombras amplas das árvores na noite escura.
Mais um pouco de tempo e nem mais
queríamos ir à casa dos avós. Íamos obrigados, pois os encantos da vida já não
estavam ali, brilhavam em muitos outros lugares que queríamos descobrir e
usufruir, menosprezando e desdenhando daquele porto seguro que nos abrigara por
tanto tempo. Quase sem que nos apercebêssemos, pois estávamos tão ocupados com
tantas outras coisas, os tios foram se casando e saindo de casa e os outrora tão
poderosos avós foram fenecendo, murcharam, encolheram, adoeceram e morreram.
A casa foi desocupada e alugada por
longos anos para um hospital psiquiátrico. O jardim foi desfeito e ali ergueram
pequenas construções, um monte de consultórios, uns cubículos desajeitados que
descaracterizaram completamente sua antiga elegância, fazendo com que, imagino,
os besouros e passarinhos abandonassem definitivamente aquele território que um
dia dominaram.
As correntes da vida me levaram para
longe e, em algum momento, estando na cidade e sabendo que haviam resolvido
vender a casa e que ela ia ser demolida por uma construtora, fui visitá-la. Para
não a esquecer, tirei várias fotos que se extraviaram, devem estar guardados em
algum lugar esquecido que nunca achei. Ainda voltei lá durante a demolição e
levei alguns azulejos do banheiro. Eram antigos, importados, feitos na Europa,
grossos e com desenhos florais art-nouveau em relevo. Levei-os para casa e meus
irmãos se apossaram deles, sem que eu me animasse em reivindicar sua posse. Demolida
a casa e os anexos, ergueram-se ali blocos de pequenos apartamentos, que me
fazem virar o rosto para o outro lado da rua nas poucas vezes que passo por ali.
Embora demolida e substituída por
aqueles prosaicos prédios de concreto, a casa não desapareceu, não foi embora.
Durante muitos anos, muitos mesmo, ela aparecia regularmente em meus sonhos. Eu
continuava sonhando com ela - acontecimentos passados e atuais tinham seus
espaços como pano de fundo. Até que um dia, não sei porque, ela deixou de
aparecer em meus sonhos, ficando-me disponível apenas quando deliberadamente
pensava nela, ou quando algo ocorria que a ela me remetia diretamente.
Perdido nas atribulações e balburdia do
dia a dia, na voragem do tempo (gosto dessa expressão tão desgastada, ela mesmo
vítima da voragem do tempo) não me apercebi que os besourões grandes, gordos,
vestindo suas carapaças negras e brilhantes, que voavam no jardim de meus avós
e no jardim das casas vizinhas haviam sido completamente esquecidos, desapareceram de minha vida por muitos anos,
por décadas, muitas décadas. Eu havia esquecido por completo sua existência,
pois nunca mais os vi em nenhum lugar, confirmando minha crença ingênua de que
eles viviam só e exclusivamente ali, eles eram “os besouros do jardim da casa
do meus avós”, que talvez tenham sentido nossa falta quando abandonamos
o jardim e nos refugiamos na casa, ignorando os antigos encantos, esconderijos
e mistérios que abrigava.
Sem que tivesse nenhuma pista de que
isso estava por acontecer, os besourões voltaram, causando-me surpresa e forte
emoção ao inesperadamente entrarem voando num sonho meu. Foi justamente então
que, ao vê-los no sonho, me dei conta de que os havia esquecido por completo. Nesse
sonho, eu estava frente a um espelho e comigo estava uma colega, a Lucia, uma
xará de minha mulher. De repente vejo os besourões. Eles são dois e, tal como
antes, eles vêm voando lentamente em minha direção, como se fossem cegos ou
desatentos. Antes que eu possa fazer qualquer coisa um deles bate no meu
pescoço e cai dentro de minha camiseta. Com o mesmo medo, asco, nojo que me
provocavam quando criança, tento tirar a camiseta, e deixá-lo livre para sair. Passou-me
pela cabeça a ideia de que poderia prendê-lo com os dedos e esmagá-lo, mas desisti,
considerei que iria sujar a camiseta. Consigo me livrar da camiseta e ele sai
voando. Minha amiga Lucia diz algo e vejo que há duas grandes manchas na
camiseta, são manchas escuras e endurecidas, como se um líquido espesso tivesse
caído ali tempos atrás. Surpreso, fico na dúvida se, apesar de ter deliberado o
contrário, não teria terminado por esmagar o besouro, ou se ele teria secretado
algo nos poucos segundos que ficara preso entre a camiseta e meu corpo. De novo
eu me surpreendia, pois tudo aquilo tinha acabado de acontecer, a camiseta deveria
estar úmida e não completamente seca como estava.
Onde estiveram todas essas décadas os
besourões da casa de meus avós? O que os teria trazido de volta? Apesar do asco
e medo de que me produziam, eu os recebi também com nostalgia, eram velhos conhecidos
trazendo de volta um mundo perdido. Era bom saber que eles e eu continuamos a
voar nosso voo cego.
O fato é que, apesar da dúvida que me
assaltou ao ver a mancha na camiseta, desta vez me recusei a matá-lo, quis
preservá-lo para que saísse voando ileso. Não quis deixá-lo agonizante caído no
chão, com sua carcaça rachada, se debatendo ainda no meio da gosma, antes que
chegasse o exército de formigas. Quis que seu voo continuasse e que ele
voltasse outras vezes, mantendo aberta a acidentada trilha que liga o passado
ao presente.
Sergio Telles é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e autor dos livros O psicanalista vai ao cinema volumes I, II e III, entre outros.
Assustador o jardim de sua avó.Ns minha infância uma das brincadeiras de mau gosto,diga_se
ResponderExcluirDe passagem, era virar besouros de ponta cabeça.Hoje sou vegetariana e choro ao ver um bicho maltratado.
Parabéns pelas lembranças da infância. Lembro da casa e da tal clínica onde passei quase cinco anos frequentando-a como paciente num dos cubículos que você pôs o nome de Consultório.Todos nós tivemos nosso episódios de perversidade. Hoje me escondo de ver toda e qualquer cena de violência. Nem sei mais se foram as violências que a vida nos faz viver ou estas onde eu mesma fui a voraz da ação!
ResponderExcluirMergulhei no seu texto e qd me dei conta, cá estava eu em meus espaços da infância. Obrigada por instigar a minha "acidentada trilha q liga o passado ao presente". Lindo texto!
ResponderExcluirBelo texto, Sergio. Sensível sua forma de contar uma estória da casa de sua infância, atravessando as mudanças da vida e sendo reencontrada nos sonhos do presente. bjos
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