O superego da quarentena


Na tensão entre o ideal e o possível, Rodrigo Alencar nos fala dos modos de viver e sofrer a quarentena. Confiram!

O superego da quarentena
Rodrigo Alencar

Há uma piada que pode nos servir de forma emblemática para essa primeira metade de 2020. Funciona da seguinte maneira:

Três condenados serão presos durante quarenta anos e só podem escolher uma coisa para lhes fazer companhia durante a reclusão:
1. O primeiro, muito culto, pede uma grande quantidade de livros, que preencha sua cela do chão até o teto. Após o pedido atendido, a porta da cela é trancada;
2. O segundo, apaixonado pelo aperfeiçoamento físico, pede que seja equipada uma academia em sua sala. Mesmo que quarenta anos depois, espera sair mais forte, bonito e vigoroso do que entrou.
3. Já o terceiro, fumante inveterado, pede que sua cela seja apinhada de seus cigarros favoritos. Acredita que em quarenta anos, o que mais lhe ajudará a passar o tempo será seus cigarros.
Após 40 anos, as celas são abertas. O primeiro sai de sua cela muito erudito, falando mais de 10 idiomas e citando clássicos literários do mundo inteiro.
O segundo sai com saúde de ferro, mesmo tendo passado 40 anos, seu físico é impecável, sua resistência aeróbica é inacreditável e tem músculos de fazer inveja aos maiores astros de filmes ação.
Já o terceiro, de aspecto cadavérico e se adiantando sobre o fundo de carteiras de cigarros intocadas, abraça desesperadamente o carcereiro que lhe abre a porta e suplica: “pelo amor de Deus, um fósforo!!!”.

A quarentena pela qual 2,5 bilhões de pessoas no mundo está passando (ou passou) nesse momento abriga, de certa forma, o drama da anedota descrita acima. Se acompanharmos a grande maioria das postagens que somam centenas de milhares de likes nas redes sociais, temos inúmeras atividades para enobrecer o espírito: listas recomendando romances, cursos de línguas, filmes, séries, literatura, até mesmo cursos on-line nas universidades mais prestigiadas do mundo. Dezenas de vídeo-aulas de ioga, treinos de academia, meditação, uma infinidade de coisas que estavam no mundo físico, antes dele ser restrito e agora pululam nas diversas telas dentro de casa.

Acontece que, se o ideal está em ser o condenado um ou dois, muitos estão na condição do terceiro. Passando horas intermitentes checando redes sociais, perguntando-se acerca do trabalho, perdendo-se em devaneios sobre o futuro, esperando resposta do aplicativo de encontro. Ou seja, a maioria espera que o carcereiro apareça com o fósforo e acenda seu cigarro.

Aproveitar a quarentena é uma contradição das mais absurdas. Não estamos em um spa, em um retiro de estudos, ou em um curso intensivo em meio aos alpes suíços. Estamos lidando com uma situação da qual pouco temos previsão, em pouco tempo iremos encarar a maior recessão desde o início do século. O ímpeto cínico de “aproveitar a quarentena” é o fantasma do mundo que parou. Uma assombração do mundo que existia antes da pandemia.

Em muitos comerciais de filmes e jogos há a palavra “épico”, marcando um antes e um depois. Vende-se, por meio dessa ideia, uma experiência de pura ressignificação subjetiva e o reposicionamento de si diante do mundo. A grande peste pode ser uma matança épica. É, também, um dos lembretes mais incontestáveis de nossa condição: a da carne que padece e morre, vulnerável como tantos outros animais que sobrevivem precariamente nesse planeta. O vírus, que vem com a tão familiar embalagem da gripe, pode transformar entes queridos e a nós mesmos em carne sem vida. Definitivamente, não é simples bombar o currículo e construir uma erudição monumental com um ruído desse de fundo.

O vírus que já chegou nos presidentes, deputados, governadores, nos atores e atrizes famosos, no corpo docente e discente das maiores universidades do mundo, não veiculou só morte, mas também espanto e fascínio. Para quem consegue usar a quarentena para ler Guerra e Paz, ou escrever outra obra com mais mil páginas como resposta, ótimo. Mas se engana quem sofre para se concentrar e não vê a hora de poder atravessar a porta, abraçar, conversar, se aproximar, ou mesmo empunhar o cigarro e pedir um isqueiro emprestado a um estranho, logo após sobreviver à maior praga que já assolou os pulmões desse século.

O que o terceiro condenado queria em sua cela, não era um isqueiro, mas alguém com quem dividir o cigarro.

Sofrer com a quarentena por não produzir ou trabalhar como antes, por não conseguir se formar em filosofia e astrofísica em Cambridge, não só acusa a distinção entre o ideal e o desejo, mas nos lembra como o ideal é sempre um invólucro de passado, a estagnação de uma vontade, um retrato bidimensional do que alguém gostaria de ser.

Viver a quarentena como a grande oportunidade para fazer o que não se tinha tempo, enquanto o mundo girava e as aulas e o trabalho aconteciam in loco é um ideal. Nos isolamos e nos privamos dos outros por um único e absoluto motivo; poder estar presente e sentir a presença do outro novamente, para que possamos partilhar nossa vida, nosso afeto, nossas palavras e nossos tropeços, pessoalmente e, principalmente, vivos.

Rodrigo Alencar é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pelo IPUSP, e professor da pós-graduação na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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